Um dia no Cais de Santa Rita, ponto de drogas, prostituição e abandono no Recife onde a trans Roberta foi queimada
Na região situada no coração do Recife e que liga pontos turísticos como o Forte das Cinco Pontas e o bairro que leva o nome da capital pernambucana, é escancarada a desigualdade social e a pobreza presente na cidade
Ao cair da noite, o Cais de Santa Rita esvazia, abrigando, somente, os grupos mais marginalizados na sociedade: vários desses que perpassavam a transexual e sem-teto Roberta Nascimento, de 33 anos, que teve 40% do corpo queimado na madrugada do dia 24 de junho no local e veio a óbito nessa sexta-feira (9). Na região situada no coração do Recife e que liga pontos turísticos como o Forte das Cinco Pontas e o bairro que leva o nome da capital pernambucana, é escancarada a desigualdade social e a pobreza presentes na cidade.
Nas calçadas, é preciso levantar os pés para que as baratas e os ratos não subam pelo corpo, e desviar de entulhos de lixo que se acumulam. É nesse ambiente que barracas construídas com lonas pretas dão abrigo a uma parcela das 1.600 pessoas que viviam em situação de rua no Recife até 2019, segundo dados da prefeitura, sobrevivendo ao alento e à espera de voluntários que distribuem alimentos todas as noites.
Parte dos antigos armazéns que guardavam as mercadorias que chegavam do Porto do Recife está em desuso, com janelas quebradas, pichados e com a estrutura comprometida. As ruas entre eles também são pontos conhecidos de venda e uso de drogas lícitas e ilícitas e de prostituição. Os poucos postes acesos não são suficientes para iluminar a área, que é tomada pela escuridão. No Cais, tudo o que se escuta é a força dos ventos. Com uma das paisagens mais bonitas do Centro do Recife, onde se vê o encontro do Rio Capibaribe com o oceano, não há espaço para contemplação, pois a sensação de insegurança impera.
Os ferimentos de Roberta, supostamente causados por um adolescente, voltaram os olhos de Pernambuco para a região e abriram espaço para que a antiga problemática da violência contra travestis ganhasse a mídia; mas as violações contra esse e outros grupos são diárias naquele ponto do Centro da cidade.
“As pessoas que estão lá são as que não conseguem mais atuar nos pontos de prostituição que temos na cidade, por já estarem no mundo da droga, com o corpo muito desgastado e não estarem mais apresentáveis para outros locais, como [os bairros de] Boa Viagem, da Imbiribeira ou na BR-101”, explica Fernanda Novíssimo, coordenadora da Rede Nacional de Travesti e Mulheres Trans.
Para a articuladora política da Articulação e Movimento para Travestis e Transexuais de Pernambuco (Amotrans-PE), Janaína Falcão, a zona é a “mais obscura da marginalidade da nossa capital”. “Não só contra pessoas em situação de rua, mas muitos gays e trans sofrem LGBTfobia naquele espaço com frequência, principalmente com violência verbal e psicológica'', complementa.
Segundo a Secretaria de Defesa Social (SDS), houve um homicídio registrado no bairro de São José, onde se localiza o Cais de Santa Rita, entre janeiro e maio de 2021, contra sete no mesmo período de 2020. Há, ainda, 216 ocorrências de roubos no mesmo bairro neste ano, contra 229 em 2020.
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Por nota, a Prefeitura do Recife afirmou que “apesar do contexto de vulnerabilidade e estigmatização, a população que vive em vulnerabilidade nas ruas do Recife não é esquecida pela Prefeitura”. “Equipes do Serviço Especializado em Abordagem Social de Rua (Seas) atuam diariamente de forma itinerante, inclusive nas imediações do Cais de Santa Rita. É feita uma escuta ativa, oferta de acolhimento institucional, aluguel social e outros serviços da rede de proteção social e garantia de direitos, cujas equipes são formadas por profissionais da Assistência Social, da Saúde e da Política sobre Drogas do Recife.”
A dicotomia entre o antigo e o Novo Mercado das Flores
Em frente ao condomínio do edifício Píer Maurício de Nassau, conhecido como “Torres Gêmeas”, o antigo Mercado das Flores virou mais um ponto de estadia para pessoas que não têm para onde ir durante a madrugada. Mas, enquanto a luz do sol predomina, ambulantes ocupam os boxes para preparar comidas e bebidas e vendê-las nas ruas. Outros, dispõem mesas no horário do almoço em suas calçadas.
Algumas destas são postas por Lindete “do Cais”, como ela se intitula, de 49 anos, que reclama da baixa movimentação de pessoas mesmo durante o dia - ainda que o comércio central atraia milhares de clientes diariamente aos arredores dos boxes. “Ninguém quer vir comer aqui. Aqui, estamos sofrendo, mas querem nos colocar no Mercado de Santo Amaro, em um fiteiro, quando meu ramo é de comida. Queremos ir para os boxes no Novo Mercado das Flores, porque tem vários livres lá”, disse.
A queixa também é do vendedor de sucos Jamilson Freire, de 55 anos. “Nos colocaram aqui prometendo que iriam nos levar para o mercado novo, que tem muitos boxes desocupados. A gente não pode sair daqui para Santo Amaro, porque nosso setor de trabalhos é aqui”. Ele também reclama da insegurança no local. “Não tem policiamento, quem faz a segurança somos nós mesmos que ficamos por aqui. Se você passar por aqui à noite, é possível que aconteça alguma coisa [contra você]. Já sofremos muitos arrombamentos, já levaram microondas, feira que tinha dentro, e não tem água, nem energia.
A Prefeitura do Recife, por sua vez, afirma que “pessoas que atualmente estão no antigo Mercado das Flores fizeram ocupação irregular do espaço, motivo pelo qual serão removidos do local, que se tornará um novo equipamento público”. Sem mais detalhes, explicou que o projeto ainda está em fase de estudo.
Uma série de degradações estruturais e queixas de insegurança fizeram com que a então gestão de Geraldo Julio realocasse, em 2018, os antigos vendedores para uma das partes do Centro Comercial do Cais de Santa Rita. Além das floristas, no equipamento também há venda de sulanca, confecções, aviamentos, adereços de carnaval, fantasia, costureiras para ajustes e customização de roupas e fantasias, utensílios domésticos, grãos, fiteiros e feira de frutas e verduras.
Em funcionamento desde 2017, o galpão tem capacidade para 550 feirantes e custou R$ 21 milhões aos cofres públicos. O funcionamento dele de segunda a sexta-feira, no horário de 7h às 19h e aos sábados até 13h. Apesar de ainda haver, de fato, boxes desocupados, o local é aparentemente limpo e organizado. Para a comerciante Ana Dias, 60, que trabalha com a venda de flores há 38 anos, a mudança foi extremamente positiva.
“Lá, se chovesse, ficávamos loucas, correndo para tirar o material. Nosso box era arrombado todo dia. Tivemos muito prejuízo ali e ninguém resolvia nada, até nos colocarem nesse ‘shopping’. Eu, particularmente, estou feliz em estar aqui. Não tivemos percas, nem roubos, nem assaltos, é sempre limpo e organizado. Para as vendas, foi melhor. Os clientes ficam mais à vontade, não ficam mais com medo”, conta.
A vendedora de artigos infantis Jaudecira Souza diz ver grande potencial econômico no equipamento, mas pede por maior divulgação do local, que ainda carece de clientela. “Em 2020 e 2021, com a economia ruim e a pandemia, o movimento está fraco, mas estou muito feliz em estar aqui, temos água, energia, internet, então isso aqui tem tudo para crescer e ser uma referência do comércio do Recife”, opina.