Morre Nanci Lourenço Soares, esposa do sociólogo José Arlindo Soares, que lutou pela igualdade e democracia no País
Incansável na defesa pela democracia e por uma educação libertadora, Nanci deixa três filhos, dois netos e o marido, o sociólogo José Arlindo Sores

Morreu, na noite do sábado (22), Nanci Lourenço Soares, aos 79 anos. Incansável na defesa pela democracia, pela igualdade e por uma educação libertadora, a auditora fiscal do trabalho aposentada deixa três filhos, dois netos e o marido, o sociólogo José Arlindo Sores, com quem era casada há 56 anos. Ela estava internada no Hospital Memorial São José, no Recife, e faleceu em decorrência de complicações para retirada de um tumor, durante uma cirurgia. A despedida de Nanci acontece nesta segunda-feira (24), das 14h às 17h, no cemitério Morada da Paz, em Paulista.
Era 23h50 do sábado quando Nanci partiu. Marido, filhos, familares e amigos vão sentir o vazio de sua ausência, mas ficam as memórias de uma vida marcada pela luta. Nascida em Fortaleza, em 1946, desde muito cedo demonstrava uma natureza inquieta, rebelde, questionadora, combativa contra as injustiças.
Nos anos 1960, mal tinha alcançado a maior idade, já estava engajada na política. Em 1965, no primeiro ano colegial, entrou para o Grêmio Estudanil do Colégio João Pontes, na capital cearense. Foi a primeira mulher no Brasil e dirigir uma entidade estudantil estadual no Brasil, com mais de 30 mil estudantes filiados. Durante sua gestão, ela liderou várias mobilizações e protestos contra o regime militar, que havia tomado o poder no Brasil, em 1964 e se estendeu até 1985.

REGIME MILITAR
Militante de um partido Trotskista, Nanci foi presa em São Paulo, nos anos 1970. Em uma carta escrita em 2021, pela passagem do seu aniversário, lembrou os anos de chumbo da ditadura militar e o aprendizado daquele período nefasto da história brasileira. Ela ficou oito meses encarcerada na ala feminina do Presídio de Tiradentes, em São Paulo. No texto, recorda que o prédio tinha o formato de uma torre e ficou conhecido na época como a Torre das Donzelas.
Nanci conta que ficou presa com outras 80 mulheres de condições e vivências diferentes. "Lá ouvi pela primeira vez a voz de Carlos Gardel (cantor argentino de tango), em um disco de cera, e me emocionei. Se a intenção deles era nos amordarçar e nos destruir, se enganaram. Pelo contrário, saímos mais fortes. Eu, por exemplo, entrei uma jovem de 23 anos e saí uma mulher de 24", diz, na carta.
Quando foi presa, Nanci já era casada com José Arlindo. Eles formalizaram a união em 1969, por procuração, porque o noivo estava com prisão preventiva decretada, em função do Congresso da UNE. Depois ele foi preso na Casa de Detenção, onde hoje é a Casa da Cultura, no Recife. Depois que deixou o presídio em São Paulo, ela decidiu vir para Recife. Chegou em uma noite de Natal e se hospedou em uma pensão junto da Estação Rodoviária, no Cais de Santa Rita, mas acabou sendo acolhida, durante um ano, na casa dos amigos de José Arlindo: dona Bibi e seu Durval, até o marido ser libertado.

AUDITORA DO TRABALHO
Em 1977 Nanci fez concurso para auditora fiscal do trabalho e foi aprovada, mas só assumiu depois da Lei da Anistia. Em 1974 concluiu o curso de Direto na Universidade Federal de Pernambuco, depois de passar pelas federais do Ceará e Amazonas. Sua atuação sempre esteve ligada à educação e à juventude.
Amiga de Nanci há 45 anos, Rosângela Tenório, conta que tomou amor pela educação graças a ela. Defensora de uma educação libertadora e inclusiva, ela chegou a idealizar instituições educacionais no Recife, a exemplo do Curso Pernambuco, do Colégio Hermilo Borba Filho e Colégio Arcoíris.
"Ela juntou um grupo de pessoas com o pensamento elevado na educação para criar o Arcoíris. Naquela época (1979) ela já pensava na formação da criança como cidadã, já estava aberta a receber pessoas com deficiência, já tinha homens ensinando, já discutia gênero", lembra. A escola ainda existe na Várzea, mas Nanci tinha se afastado por conta do trabalho no Ministério do Trabalho.
TRABALHO INFANTIL
Nanci foi uma das primeiras pessoas a denunciar o trabalho escravo infantil, praticado nas usinas de açúcar da Zona da Mata de Pernambuco. Ela deu uma importante contribuição nessa área, com a coordenação de uma pesquisa sobre o trabalho infantil na região que, na época, repercutiu na imprensa nacional e internacional. Também contribuiu para a criação do Bolsa Escola, ainda no governo Itamar Franco, e que se consolidaria na gestão Fernando Henrique Cardoso. No seu percurso brilhante, Nanci também foi, por duas vezes, presidente do Centro Josué de Castro. Uma 'cearense-pernambucana', que Pernambuco deve reconhecer, lembrar e se orgulhar.