Que fim levou o Consórcio Nordeste? Dois anos após sua criação, principal ação foi discurso alinhado com a ciência
Numa época em que o Brasil parece estar na idade média, um discurso dos chefes do Executivo alinhado com a ciência contribuiu para salvar vidas na região, como explica o físico Sérgio Rezende, coordenador do comitê científico do Consórcio Nordeste
Dois anos depois da sua criação, a principal ação do Consórcio Nordeste até agora foi o discurso alinhado com a ciência durante a pandemia do novo coronavírus, que começou, no Brasil, no final de fevereiro do ano passado. Pode parecer pouco, mas numa situação, tão adversa como a atual, isso pode contribuir para salvar vidas. O País passa por uma das maiores instabilidades políticas, econômicas, inclusive com a autoridade máxima do País, o presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), que negou, algumas vezes, avanços da ciência consensuais, como a eficácia das vacinas.
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"Os Estados se sentiram muito vulneráveis. O consórcio se fortaleceu durante a pandemia, quando os governadores criaram uma ação conjunta contra Bolsonaro. Os governadores do Nordeste atuaram em bloco com relação à Pandemia e à vacinação. Foi positivo esse posicionamento a favor da vacina", comenta a professora da Facho e cientista política Priscila Lapa, acrescentando que foi muito atípico este rompimento dos governadores do Nordeste, em bloco, com Bolsonaro.
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Atualmente, todos os governadores do Nordeste são de partidos que fazem oposição ao presidente Jair Bolsonaro. Na história recente do País, uma parte dos governadores da região era de oposição ao então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), mas não houve um rompimento, em bloco, entre os chefes dos Executivos destes Estados e o chefe do executivo na esfera federal. "Geralmente, a maior parte dos governadores era a favor ou neutra, outra parte, contrária. Os governadores do Nordeste enfrentaram momentos muito difíceis com relação aos recursos e também a entendimentos com o governo federal durante a pandemia", afirma.
A decisão do consórcio sobre a necessidade de vacinar a população foi positiva, na opinião da cientista política. "A gente percebe pelas pesquisas de opinião que melhorou a avaliação da população com relação aos governadores e prefeitos por causa da vacina, enquanto a popularidade de Bolsonaro decresceu neste período",comenta.
Durante a pandemia, aconteceu várias vezes, do governo federal anunciar uma decisão e, em bloco, os governadores do Nordeste anunciarem, via consórcio, que não seguiriam a recomendação da União. A última vez que isso ocorreu foi em setembro último, quando o Ministério da Saúde recomendou suspender a vacinação dos adolescentes, quando os governadores anunciaram em bloco que iriam continuar a vacinação para aqueles que têm entre 12 e 17 anos. Com as indefinições da Sputnik, o consórcio chegou a enviar uma carta ao presidente norte-americano, Joe Biden, pedindo uma doação de vacinas contra a covid-19 para vacinar os nordestinos.
O Consórcio também instituiu um Comitê Científico de Combate ao Coronavírus criado no começo da pandemia com a participação de nomes reconhecidos pela sua atuação em prol da ciência, como o cientista Miguel Nicolelis e o físico, Sérgio Rezende, ex-ministro de Ciência e Tecnologia no governo do presidente Lula entre 2005 e 2010 e coordenador do comitê científico do Consórcio Nordeste. Durante a crise sanitária, o comitê emitiu, com regularidade, 20 boletins com recomendações, inclusive a de fazer lockdown quando a ocupação dos leitos ultrapassasse 80%. O último boletim foi lançado há duas semanas e defende que não é a hora da população suspender o uso de máscaras, entre outras sugestões.
"O comitê se reunia semanalmente no começo da pandemia depois passou a ser mensalmente. Em maio do ano passado, o Nordeste tinha 35% dos casos e 35% dos óbitos provocados pelo coronavírus. Agora, o Nordeste apresenta 19% dos casos e 19% das mortes. Isso significa que os governadores e os prefeitos optaram por ouvir a ciência. É uma indicação de que as coisas estão funcionando, diferente de como estávamos em maio do ano passado", afirma Sérgio Rezende. O Nordeste tem 27,2% da população brasileira.
Ainda de acordo com Sérgio, o Consórcio está implantando câmaras setoriais que são formadas por secretários das áreas e presidididas, cada uma por um governador diferente. As câmaras que já existem são as de educação, meio ambiente, assistência social, ciência e tecnologia. "O consórcio vai se tornar algo importante diante da falta de uma coordenação nacional", diz Sérgio, se referindo a falta de integração de um desenvolvimento regional. Os cientistas que participam do comitê são voluntários, ligados aos governos estaduais ou às universidades.
NEGATIVO
A pandemia não trouxe só coisas positivas ao Consórcio Nordeste. Para se contrapor ao governo federal, o grupo decidiu importar 37 milhões de doses da vacina Sputinik V, fabricada pela Rússia, para acelerar a imunização da população do Nordeste num momento em que não haviam vacinas disponíveis para compra no mercado. Por causa de vários problemas, incluindo restrições da própria Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que não teve acesso aos estudos completos realizados no desenvolvimento do imunizante russo. A aprovação de uma vacina é algo complexo e cheio de etapas, que devem ser rigorosamente obedecidas.
O outro episódio que trouxe desgaste a imagem do consórcio foi a compra de 300 respiradores pulmonares no valor de R$ 49,4 milhões que geraram recomendações, no caso de Pernambuco, do Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco (TCE-PE) por suspeitas de irregularidades. As suspeitas eram de corrupção, uma velha conhecida dos brasileiros. Segundo informações do governo de Pernambuco, não houve prejuízo aos cofres estaduais nesta operação porque os recursos foram devolvidos.
Esta mesma compra chegou a ser motivo de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte. Segundo Priscila Lapa, os dois episódios citados acima impactaram negativamente a imagem do consórcio, acrescidas de uma denúncia de corrupção que chegou a ser o motivo de uma operação da Polícia Federal que tinha como alvo a secretaria de Educação do Piauí na gestão do governador Wellington Dias (PT). Consultada a assessoria de imprensa do Ministério Público Federal (MPF) em Recife, informou que não há qualquer inquérito público sobre as compras do Consórcio Nordeste, porque há inquéritos que são feitos sob sigilo e estes não podem ser divulgados. Na assessoria de imprensa da Polícia Federal em Pernambuco, também não há investigações públicas sobre as atividades do Consórcio Nordeste. A reportagem do JC procurou, por dois dias, entrevistar um porta-voz do Consórcio Nordeste, mas não conseguiu até às 18 h30m da sexta-feira (29).
HISTÓRICO
Criado em agosto de 2019, o Consórcio Nordeste surgiu como uma reação a postura preconceituosa do presidente da República com os nordestinos, logo depois dele chamar de "paraíba" os que nascem na região, formada por nove Estados, que incluí a Paraíba. "O modelo de consórcio no ambiente estadual e municipal não parece ser muito aderente à nossa cultura, que é muito personalista. As pessoas querem saber quem é o pai da obra. Temos uma dificuldade de pensar as políticas públicas de forma coletiva", argumenta Priscila, acrescentando que os consórcios que se deram melhor na região foram aqueles de propósito específico, como o de tratamento de resíduos sólidos.
E o Nordeste é uma das regiões que tem a pior infraestrutura do País e o desenvolvimento desses projetos poderiam ser feitos de forma comum, de uma forma integrada. Há muitos anos, a região não tem um plano de desenvolvimento regional em execução. Em setembro deste ano, foi anunciado o desmembramento do trecho pernambucano da Ferrovia Transnordestina, que ligaria o Sul do Piauí aos portos de Pecém, na Grande Fortaleza - capital do Ceará; e ao de Suape, no litoral Sul de Pernambuco. Agora, os trechos cearenses e pernambucanos serão feitos, cada um, por uma empresa diferente. Era o maior projeto de desenvolvimento regional que poderia tornar mais competitivo várias cadeias produtivas de Pernambuco, Ceará, uma parte do Piauí e alguns Estados mais próximos.
"O grande teste de fogo do consórcio Nordeste pode ser o próximo ano, que é eleitoral. Há uma tendência de cada governador cuidar do seu reduto. Se conseguir sobreviver a 2022 e se manter, o consórcio poderá ter resultados concretos e fazer entregas à sociedade. Até agora, foi muito discurso, mas isso foi decisivo dentro do contexto com Bolsonaro", conclui Priscila Lapa. A pandemia deixou mais de 600 mil mortos no Brasil, parou a economia e deixou na memória nacional cenas de desespero que jamais serão esquecidas.