Por Adriana Fernandes e André Borges, da Estadão Conteúdo
Eram 18h10 de 29 de dezembro de 2022, quando o servidor da Receita Federal Marco Antônio Lopes Santanna recebeu uma visita "em caráter de urgência" na Base Aérea de Guarulhos, em São Paulo.
Um avião da Força Aérea Brasileira tinha acabado de chegar ao terminal do aeroporto para "atender a demandas" do presidente da República, como mostra documento da FAB. Naquela quinta-feira, Santanna recebeu o primeiro-sargento da Marinha Jairo Moreira da Silva.
O militar tinha uma missão determinada pelo então presidente Jair Bolsonaro. Faltavam dois dias para o chefe do Executivo deixar o cargo. Como ainda era presidente, Bolsonaro tratou de agir. Era preciso retirar as joias de diamantes avaliadas em R$ 16,5 milhões, presentes do regime da Arábia Saudita a ele e à então primeira-dama, Michelle Bolsonaro.
Ao encontrar o servidor no aeroporto, Silva mostrou a tela de seu celular, exibindo um ofício dirigido "ao Sr. Julio Cesar". Tratava-se de Julio Cesar Vieira Gomes, o secretário que então comandava a Receita.
O militar dizia estar ali para retirar "um material" retido na alfândega e que a própria chefia da Receita já devia ter entrado em contato com a alfândega de Guarulhos. O documento fazia referência a um "Termo de Retenção de Bens" relacionado a joias.
‘CORONEL’
O servidor, porém, não engoliu a história. Disse que não tinha informações e não iria entregar nada. Preocupado, Silva ligou para alguém a quem se referia como "coronel" e pediu ao auditor que conversasse com o seu "coronel". Ele negou fazer aquele tipo de atendimento pelo telefone.
O militar insistiu. Disse que iria identificar o responsável da Receita que trataria da liberação. Santanna explicou que o ofício exibido no celular não se dirigia a ele, mas ao chefe da Receita.
Repetiu que desconhecia tal operação e que, por se tratar de retirada e incorporação de bem, o processo teria de ser formalizado em um "Ato de Destinação de Mercadoria".
Mas o emissário de Bolsonaro tinha ordens para deixar o local apenas com as joias em mãos. Silva exibiu, então, um "Termo de Retenção", mas Santanna repetiu que não teria como ajudar.
O militar se exasperou. Disse que cumpria missão "em caráter de urgência". O auditor pediu que o documento fosse enviado para o e-mail corporativo da alfândega, mas Silva afirmou aguardaria orientações, pois o seu "coronel" iria falar com mais alguém.
Foi aí que o primeiro-sargento comentou a troca de comando na Presidência da República, dali a dois dias.
Em sua tentativa de convencimento, disse a Santanna que aquilo fazia parte da troca de governo: "Não pode ter nada do antigo para o próximo, tem que tirar tudo e levar".
Uma nova ligação tocou no celular do militar. Era Julio Cesar Vieira Gomes, o secretário que comandava a Receita Federal e era alinhado a Bolsonaro. O militar sugere passar o celular ao auditor. A ideia era que a liberação das joias fosse reforçada por Julio, mas Santanna se manteve inabalável, negou a liberação e pediu que o militar entrasse em contato com o delegado da alfândega de Guarulhos. A ligação foi encerrada.
Santanna pediu, então, ao militar que aguardasse uma resposta do delegado da alfândega de Guarulhos, com o devido Ato de Destinação de Mercadoria, mas voltou a frisar que, mesmo com a apresentação do documento, naquela circunstância, haveria muita dificuldade em acessar as joias.
Os registros da FAB mostram que o emissário do presidente voltaria a Brasília em voo comercial. Caso tivesse conseguido retirar as joias, os itens entrariam pelo aeroporto de Brasília, fora de área da alfândega, e estariam nas mãos do casal Bolsonaro.
Dos Estados Unidos, o ex-presidente negou saber das joias e disse que nada pediu nem recebeu. Michelle foi às redes sociais para ironizar o valor do presente, que alegou desconhecer.
As joias seguem apreendidas no cofre da Receita, em Guarulhos.