Por Romero Rafael
Texto publicado originalmente no Jornal do Commercio
Bebe das águas do São Francisco, mergulha no mar de Salvador e dança as batidas da noite paulistana a primeira atração divulgada pelo Festival Rec-Beat, que neste Carnaval completará 25 edições. Josyara – artista nascida em Juazeiro (BA), maturada na capital baiana e há cinco anos vivendo em São Paulo – trará ao Recife, pela primeira vez, com banda, o show "Mansa Fúria", derivado do álbum homônimo que lançou em agosto de 2018, pelo selo Natura Musical. A data ainda será anunciada.
"Mansa Fúria" não é o primeiro trabalho de Josyara – que, em 2012, lançou "Uni Versos", quando ainda assinava Josy Lélis – mas é como se fosse. É nele em que está a identidade da artista: não só seu nome tal qual no RG, mas seu esqueleto musical constituído por voz e violão.
"Consegui sintetizar a minha trajetória nele – desde a saída de Juazeiro para Salvador até o momento de agora, morando em São Paulo", conta Josyara, sobre o disco, em conversa por telefone, já ansiosa pelo show no Carnaval e com a lembrança da única vez em que se apresentou aqui, em outubro de 2018, pelo projeto Ouvindo e Fazendo Música, que era realizado nos fins de tarde de sábado, no Museu do Estado.
De fato, o som de "Mansa Fúria" percorre uma trajetória afetivo-geográfica; um mapa do percurso andado até aqui pela artista de 28 anos. Há de onde Josyara veio – na voz e no violão descobertos ainda em Juazeiro. Há por onde Josyara passou – no samba do Recôncavo Baiano, aprendido com Roberto Mendes, em Salvador. E há de onde Josyara está – no flerte do seu violão com a música eletrônica, depois que foi viver na capital paulista; harmonização que, no álbum, ficou sob o cuidado do produtor Junix 11.
Foi ele quem propôs as texturas eletrônicas que dialogam com o violão num casamento bem-sucedido. "Um risco que me ensinou muito do que posso fazer no futuro, dos meus gostos e do meu jeito se renovando", avalia.
ComJosyara mantém uma relação de uns 15 anos com o violão. Começou estranhamente, ainda criança, quando, ao avistar o instrumento do avô em cima do guarda-roupa, pegou e quebrou. Tempo depois, recebeu as primeiras aulas de uma amiga da mãe. Tomou gosto. Continuou a escavar o violão sozinha, num processo quase autodidata. Em Salvador aprimorou a técnica em cursos de harmonia e violão erudito. E segue a estudá-lo e a desenvolver seu jeito próprio de tocar.
"Meu violão, basicamente, é isso: tenho uma ideia, e o estudo dela pode trazer alguma composição. Tenho necessidade do meu estudo ser uma criação; às vezes, vira canção, às vezes fica por isso mesmo." Logo, cada composição – e, registre-se, "Mansa Fúria" é completamente autoral! – é resultado de um estudo da artista debruçada sobre seu instrumento.
A letra, diferentemente da melodia, baixa no fluxo – "Às vezes demora, escrevo um verso ali e vejo um mês depois… mas, normalmente, eu digo o que estou sentindo no momento. Seja do meu corpo, ou sobre o meu corpo em determinado lugar, como quando fui a Europa pela primeira vez e meu corpo era outro, porque os preconceitos eram mais escancarados. Essa reação desperta uma vontade de dizer, mas um dizer cantado. Meu negócio é o corpo e a minha palavra, corporal-musical. Se eu tenho necessidade de cantar, surge a letra, e o violão vem junto para reger".
Assista ao clipe de "Você que Perguntou" e "Nanã":
Nas composições que formam "Mansa Fúria" há água num fluxo constante, sendo os movimentos dela metáforas para os sentimentos registrados no corpo da artista. "A solidão se desmanchou em chuva/ Ensopou as ruas do meu coração", canta em "Solidão Civilizada"; "Feito um toró você caiu/ e me invadiu/ me alagou […]/ Lavou toda a plantação", entoa ela em "Rota de Colisão"; ou ainda os versos "Calor só presta na beira de rio/ Calor só presta na beira do mar", de "Temperatura".
"Sou ribeirinha de Juazeiro e me apaixonei pelo mar, horizonte que eu reconheço necessário na minha vida. Mas também gosto de falar do mar que está em mim; essas águas com movimento, mais terrosas, Nanã, que estão na gente. É um olhar de dentro pra fora."
"Nanã", uma das faixas do disco, com nome em referência à orixá que é terra em contato com a água - o barro, a lama - parece falar das águas da saudade que invadem a vida dela em São Paulo. "Ouço a voz de minha mãe/ Dizendo filha olha/ Ao seu redor entenda/ Tudo é como deve ser". "São Paulo tem suas águas mortas; que o progresso mata. Tem todos os rios submersos, soterrados. É muita água! Eu reconheci nesse momento a necessidade de falar delas. Coincidiu nessa trajetória essa correnteza."
É muito apropriado: as águas podem, mesmo, aparentar uma mansa fúria – como são alguns sentimentos, a voz, o violão e a música de Josyara.
Ouça o álbum "Mansa Fúria":