Não é nada fácil viver nas ruas. Além da fome, do frio, do medo e da desconfiança de muitos dos que passam pelas calçadas, há ainda a indiferença de outros tantos, que sequer percebem a existência dos “invisíveis” que não têm teto. A vida de quem se vê sem um lar ou prefere a rua às dores de uma família desestruturada, muitas vezes violenta, é dura, mas nem sempre é amarga. Em meio ao sofrimento, há sempre quem lhes estenda a mão.
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E foi para apoiar, para dar a mão aos que muitas vezes são esquecidos pelo poder público que foi criado, há pouco mais de um ano, o projeto Pão Nosso de Cada Noite. O objetivo principal do grupo - que reúne cerca de 40 voluntários - é fornecer alimentação para os moradores de rua que se concentram sobretudo na Rua do Imperador e no Cais de Santa Rita, na área central do do Recife. As palavras e atitudes dos que recebem os alimentos, entretanto, mostram que não é só o corpo que sai nutrido dos encontros com os integrantes, mas também a alma.
A reportagem do JC acompanhou, na última terça-feira (2), a ação dos voluntários. É neste dia da semana que empresários, assistentes sociais, médicos, advogados e profissionais das mais diversas áreas se reúnem para fazer toda a comida que será distribuída e realizar a entrega. Nesta semana, aproximadamente 30 pessoas trabalharam no projeto, mas já houve ocasiões em que mais de 40 voluntários participaram da atividade.
“Nós e os moradores de rua somos uma família. Sei que passamos pouco tempo com eles e recebemos críticas em relação a isso, dizem que somos assistencialistas, que não mudamos em nada a vida deles. Mas não é melhor fazer alguma coisa do que ficar em casa lamentando a situação?”, questionou o advogado Rafael Leão, de 28 anos, coordenador do grupo. “Nossa intenção é de, no futuro, construir um local onde essas pessoas possam ficar”, concluiu a assistente social Marta Pontes, 55.
O cardápio preparado varia de acordo com o que o projeto recebe de doações. O dono de uma padaria, por exemplo, doa semanalmente 150 pães para a ação. Terça-feira, foram preparados cuscuz, munguzá e pão com mortadela. Também foram distribuídos café, achocolatado, água e suco.
Depois do encontro no bairro da Madalena, na Zona Oeste do Recife, o grupo seguiu para o primeiro ponto de parada, a Rua do Imperador, na frente da Capela Dourada. Quando a reportagem chegou ao local, os alimentos já estavam sendo distribuídos. Uma longa fila de adultos aguardava a entrega da comida enquanto as crianças, sentadas, eram servidas. Você, leitor, pode imaginar que o cenário era desolador, correto? Errado. O carinho com que os voluntários serviam, ouviam, conversavam com as pessoas e a reciprocidade do sentimento fazia com que a ação mais parecesse um encontro de velhos amigos.
“Esses meninos são a nossa esperança”, disse Maria de Lurdes Gomes, 54. Desempregada, há cerca de 10 anos ela perdeu em um incêndio a casa que possuía no bairro dos Coelhos. Desde então, mora com o filho em um barraco na comunidade do Brum, no Bairro do Recife. O aluguel de R$ 110 é pago com o auxílio-moradia que recebe da Prefeitura do Recife, no valor de R$ 200. Para comer não sobra quase nada. É por isso que sempre vai, à noite, para a Rua do Imperador, onde, além do Pão Nosso de Cada Noite, outros grupos de voluntários costumam distribuir alimentos.
A segunda parada foi no Cais de Santa Rita, em frente à loja Geraldo Araújo Tecidos. Enquanto parte dos integrantes do grupo servia os moradores de rua que concentram no local, outra parte deles seguiu com a reportagem até um dos boxes do Mercado das Flores. Fechado em uma das unidades, um senhor de 60 anos recebeu e agradeceu os alimentos levados até ele. “O senhor gosta de bolo?”, perguntou Rafael Leão, sem exergar quem estava do outro lado da grade. “Ô! Gosto sim!”, respondeu o homem.
O lugar é sujo e infestado por insetos e roedores, mas ainda assim é melhor do que a rua. De acordo com o idoso, que se identificou como Vital de Negreiros, ele trabalha no mercado durante o dia, regando as flores, e o administrador do espaço permite que ele durma no boxe.
Alessandra Riedel, 44, é representante de uma indústria farmacêutica e voluntária no grupo há aproximadamente um mês. Segundo ela, mais do que comida, o Pão Nosso de Cada Noite semanalmente distribui amor à população em situação de rua do Centro do Recife. “Eu não tenho palavras para descrever a felicidade que sinto ao sair daqui, onde damos e recebemos muito amor. Certa vez percebi que uma criança apenas observava as pessoas serem servidas e perguntei por que ela também não seguia para a fila. Ela respondeu que não estava ali pela comida, mas pelo abraço”, disse, emocionada.
As crianças, inclusive, são as maiores beneficiadas com o carinho dos voluntários, que promovem brincadeiras, contam histórias e, sempre que podem, disponibilizam brinquedos e materiais escolares para elas. E não é difícil flagrar os pequenos “pagando” pelos presentes e atenção. A toda hora os integrantes do grupo são surpreendidos com abraços e beijos sorridentes.
Por meio de nota, a Secretaria de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos da Prefeitura do Recife informou que estima que 775 durmam atualmente nas ruas do Recife. A pasta diz também que “possui o Serviço Especializado em Abordagem Social de Rua (SEAS), que dispõe de sete equipes nos três turnos (cinco diurnas e duas noturnas) e mapeia as pessoas em situação de rua”.
O comunicado diz ainda que o serviço abrange as 6 RPAs da cidade e “trabalha com a sensibilização das pessoas, visando o resgate da cidadania e a retirada consensual dessas pessoas das ruas”. Segundo a pasta, “as equipes conversam, conhecem as pessoas e suas histórias, orientam e, sempre que aceito, fazem os encaminhamentos, seja para acolhimento, retirada de documentos, acesso à rede de saúde, inclusão no aluguel social, em programas sociais e até mediação dos laços familiares interrompidos”. De acordo com a nota, uma visita à área foi solicitada.
Quem estiver interessado fazer doações de alimentos, livros, roupas, brinquedos ou participar do projeto como voluntário pode entrar em contato com o grupo através do Instagram ou Facebook do Pão Nosso de Cada Noite. Em caso de necessidade, integrantes do coletivo fazem o recolhimento da doação na casa ou empresa do doador, ou seja, você pode ajudar sem sequer sair de casa.