Foram 94 dias no inferno.
A chegada ao Cotel aconteceu perto da madrugada. A uma semana do Carnaval. Na pior lembrança desses infindáveis dias, um detento esmagou a cabeça de outro, usando um peso de academia. Praticamente ali, na sua frente. Até hoje a cena lhe tira o sono. Diante de celas apinhadas de corpos masculinos, a primeira coisa que pensou, ao chegar na cadeia, foi: “Como eu vou caber aí dentro?” Coube. A rotina selvagem, o livre consumo e venda de drogas, a desumanização, a higiene precária, os tribunais paralelos, a ausência completa do Estado. Para quem nunca tinha posto os pés numa delegacia, aquilo poderia ter sido o fim.
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Como tantos outros, começou a usar droga por diversão, na balada. Logo virou o “canal” da galera e sempre tinha à mão LSD e ecstasy para vender aos amigos, turbinar as raves. A “queda” derrubou a família. A mãe passou a ter pressão alta. O pai nunca mais foi o mesmo. De uma hora para outra se reconheceu naquelas manchetes que saem no jornal: “Jovem de classe média preso por tráfico”. A pele clara, as bermudas de marca, o português correto, mal chegou, já virou, na gíria do presídio, o “playboy”. Lá, teve o que se pode chamar de sorte. Ficou amigo de um dos livreiros. Os dois, além dos livros, gostavam de tecnologia. E a amizade terminou lhe rendendo alguma moral, o suficiente para deixar seu corpo ileso das violências cotidianas da cadeia.
Condenado, pegou 5 anos de prisão. Réu primário, bons antecedentes, endereço fixo, a pena foi reduzida à metade. E o trecho mais importante da sentença: “Com prestação de serviço à comunidade, a ser cumprida na Vara de Execuções de Penas Alternativas”.
Aqui é preciso fazer uma pausa. “Isso mudou a minha vida. Ganhei minha segunda chance.”
Foi mais que a liberdade. Em vez das “oito horas semanais de trabalho”, exigidas pela sentença, ele começou a ir todos os dias para a Vepa, como é mais conhecida a Vara de Execuções de Penas Alternativas, no 5º andar do Fórum Joana Bezerra, na região central do Recife. O acolhimento dos psicólogos, assistentes sociais, técnicos e, principalmente, a confiança dada pelo juiz, idealizador e titular da Vepa, Flávio Fontes, levaram o jovem a descobrir uma vocação que jamais imaginou ter. Foi fazendo uma coisa, mexendo em outra; começou a ler um ou outro processo; quando viu, tinha decidido o que fazer dali por diante. Passou um ano trabalhando lá. De tanto ir, a pena de dois anos e meio terminou sendo cumprida em 11 meses.
Na semana passada, sentado num banco perto da biblioteca, voz pausada, discreta, o jovem foi narrando os capítulos de sua história, não mais na condição de ex-presidiário, mas de estudante do curso de direito, no segundo período de uma faculdade particular. “Esse semestre, tive as melhores notas da sala”, diz, menos por orgulho e muito mais por afirmação. Antes da cadeia, sempre estudou em escola particular, parou no primeiro ano do ensino médio. Para cursar a faculdade, precisou fazer supletivo. “Na época do colégio, sempre fui um dos mais aplicados. Às vezes, me sinto como se tivesse voltado no tempo.”
CARIMBO
Quase ninguém na faculdade conhece a sua história. E não só lá. O jovem estudante paga as mensalidades do curso com o salário que recebe no emprego de carteira assinada que conseguiu depois de cumprir a pena. Natural, portanto, que rosto, voz, nome, sobrenome não caibam aqui. “Meu medo é do carimbo. Não tenho vergonha do que passei. É a minha história. Mas do preconceito, dos olhares, dos julgamentos. Porque, quem um dia passou pela prisão, parece nunca conseguir sair dela.” Uma etiqueta colada à pele que o jovem, se puder, quer evitar.
Ele não tem dúvida. Pelo que viu e viveu, está convicto de que presídio não recupera ninguém. “Pelo contrário. Quem entra sai pior. A maioria não teve instrução, chega com uma vida completamente desestruturada. Tem gente que entra normal, sem uma vida no crime, e sai revoltado. Por causa do sofrimento que passa. Dormir no chão, lugar molhado. Ali o Estado não existe.”
– “E se você tivesse passado os cinco anos de sua condenação lá dentro? Estaria aqui agora?”
Como se acordasse de um pesadelo, diz nem querer imaginar o que teria acontecido. “Sinceramente, acho quase impossível. A Vepa foi um divisor na minha vida. Abriu meus olhos para outro mundo. Eu era meio desmotivado. Passei a trabalhar com pessoas concursadas. Aos poucos, você começa a almejar aquilo, vira uma inspiração.”
OPORTUNIDADE
Na conversa com o juiz Flávio Fontes, fica evidente que a recíproca é verdadeira. “Para nós, é uma motivação. Todo o esforço e o trabalho da vara é para que histórias como a dele se multipliquem. Há centenas de pessoas hoje nos presídios com esse perfil. São homens e mulheres esperando a chance de cumprir sua pena com dignidade e oportunidade.” Única Vara de Execuções de Penas Alternativas, a Vepa recebe por mês cerca de 200 processos. Outros sete mil já tramitam lá dentro.
À frente da vara em seus 15 anos de existência, o juiz Flávio Fontes tem convicção de que o maior desafio para replicar histórias iguais a essa é romper com o preconceito contra quem está ou passou pelo presídio. “Empresários, classe média, Estado, cada um precisaria dar o exemplo. Como a gente prega ressocialização, se não faz nada para construir esse retorno à sociedade?”
Agora que aprendeu a trilhar esse caminho, o jovem estudante de direito só quer olhar para frente. Terminar o curso. Passar na OAB. Acabou de se inscrever no concurso aberto pelo Tribunal de Justiça de Pernambuco. Mas sonho mesmo é advogar. Seja como for, quer voltar ao sistema por outra porta. Bem diferente da que entrou.