Dança

Crítica: Deborah Colker lapida O Cão Sem Plumas de João Cabral

Sofisticado e potente, espetáculo mantém essência de João Cabral de Melo Neto

Márcio Bastos
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Márcio Bastos
Publicado em 03/06/2017 às 12:59
Cafi/Divulgação
Sofisticado e potente, espetáculo mantém essência de João Cabral de Melo Neto - FOTO: Cafi/Divulgação
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Um rio que passa a cidade como uma rua é passada por um cachorro e uma fruta por uma espada. Com imagens como essas, que abrem o poema O Cão Sem Plumas, um dos mais marcantes de nossa literatura, João Cabral de Melo Neto tenta capturar a essência do rio Capibaribe. Porém, mais do que falar sobre o rio, ele investiga aquilo que ele toca e evoca, das paisagens à população que vive em seu entorno. Inspirada nessa missão, Deborah Colker estreia neste sábado (3), no Teatro Guararapes, um espetáculo que, assim como o poema que lhe dá nome, busca mergulhar nas águas misteriosas do ethos pernambucano.

Assim como no poema, o espetáculo acompanha os caminhos do Capibaribe, do seu nascimento ao seu encontro com o mar. A jornada é tortuosa e vai moldando tudo ao seu redor. Os bailarinos, todos cobertos de lama, levam nos corpos os signos do curso da água.

A proposta de Deborah Colker de aliar dança contemporânea com cinema se concretiza logo nos primeiros instantes do espetáculo. As imagens impactantes capturadas por Cláudio Assis prendem o espectador imediatamente e, logo, somos tomados de assalto pela transição do audiovisual com os movimentos dos bailarinos. A proposta atinge, muitas vezes, a simbiose quase total, como uma espécie de efeito 3D.

A pesquisadora Thereza Rocha afirma que a dança contemporânea tem em seu cerne o questionamento, expandindo as possibilidades dos corpos, movimentos e do que entendemos como dança. No trabalho de Deborah Colker, esse pensamento toma forma de maneira orgânica, com questões multidisciplinares encontrando-se, colidindo-se em uma espécie de confronto ordenado.

Em cena, estão articuladas indagações (e indignações) sobre o descaso com a natureza, com o homem e a ideia de humanidade. Há também uma celebração desse rio por vezes minguado, resultado da seca provocada pelos fenômenos naturais e políticos, em outros momentos caudaloso, fomentando uma natureza exuberante e uma cultura pulsante.

INTENSIDADE

Os movimentos propostos pela companhia traduzem bem essa sensação e os bailarinos lançam seus corpos em uma transformação quase total do homem-caranguejo de João Cabral de Melo Neto, Josué de Castro e Chico Science. Essa sensação é reforçada pela trilha criada por Jorge Du Peixe, que combina elementos eletrônicos com a percussão intensa do maracatu e do coco.

Outro elemento que adiciona intensidade ao espetáculo são as intervenções vocais de Lirinha, que interpreta trechos do poema. O recurso poderia, caso usado de forma excessiva, causar engessamento na fruição, o que não ocorre. Sua narração ocorre de forma quase fantasmagórica, como que sussurrando segredos daquele universo lamacento e aquoso.

Prova da força da montagem é sua capacidade de capturar a atenção dos variados tipos de plateia. O JC acompanhou uma apresentação para crianças na faixa dos 10 anos. Agitadas antes da apresentação, permaneceram em silêncio, vidradas, uma vez que os movimentos se iniciaram. E aplaudiram entusiasmada quando as luzes se apagaram. O Cão Sem Plumas, afinal, é um pouco de todo pernambucano.

 

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