NÃO-FICÇÃO

Filme 'No Intenso Agora' fala da euforia e desilusão de Maio de 1968

Documentário de João Moreira Salles partiu de imagens feitas pela mãe do cineasta

Diogo Guedes
Cadastrado por
Diogo Guedes
Publicado em 02/02/2018 às 15:00
Divulgação
Documentário de João Moreira Salles partiu de imagens feitas pela mãe do cineasta - FOTO: Divulgação
Leitura:

Um dos grafites mais icônicos de Maio de 1968, revolta estudantil que paralisou a França de De Gaulle, define – ou justamente evita definir – os anseios líricos do movimento: “Debaixo dos paralelepípedos, a praia”. No documentário No Intenso Agora, o cineasta João Moreira Salles conta que uma das possibilidades é que a palavra de ordem surgiu quando um estudante, ao arrancar um paralelepípedo para construir uma barricada na rua, notou que havia areia ali embaixo – havia um outro mundo possível, um mundo indefinido e prazeroso como uma praia.

Outra versão, bem menos idealizada, afirma que um publicitário teria criado a frase depois de um longo brainstorm em uma cafeteria. Ou seja, o lirismo alegre e ingenuamente poderoso da revolta era perfeitamente sintetizado por um slogan.

O documentário de João Moreira Salles, em cartaz no Recife no Cinema da Museu, poderia ser um retrato sobre a passionalidade (e o fracasso dela) das revoltas, especialmente as de 1968. É, no entanto, bem mais que isso: é uma busca por entender a euforia, o encanto e desencanto com o vislumbre de mundos possíveis. É um filme que procura imagens dentro das imagens, contradições dentro das expressões, as pessoas e seus sentimentos dentro do coletivo.

Como poucos, Moreira Salles sabe encontrar histórias por trás das superfícies. No Intenso Agora começa com as imagens feitas pela mãe do diretor, Elisa Moreira Salles, durante uma viagem pela China maoista em 1966, logo após o início da Revolução Cultural. São cenas que expressam o fascínio dela diante de um mundo novo, inesperado, que não cabia nos seus conceitos prévios. Em certa medida, tudo isso é um retrato da felicidade de Elisa. “Nem sempre a gente sabe o que tá filmando”, afirma o diretor.

A família Salles morava em Paris em 1968. Apesar disso, não existem filmagens da mãe de Maio de 1968 - o próprio diretor ressalta esse estranhamento. Assim, João Moreira Salles utiliza as gravações da época: vê ali o ponto alto da vida daqueles jovens, criadores de uma revolta que não toma palácios, que não se paralisa propondo estruturas. Um dos estudantes, Daniel Cohn-Bendit, é o porta-voz dessa “espontaneidade incontrolável”.

Não é um olhar de idealização. Moreira Salles comenta a ausência de mulheres com voz nos registros de Maio de 1968. Ao olhar os negros, aponta que todos protestam como figurantes, a maioria vestida de terno - eles não têm direito à informalidade dos demais. Na passeata dos estudantes até a porta da fábricas, que entraram em greve com o movimento, o retrato da desconfiança dos trabalhadores com os jovens idealistas. Eles, no alto dos muros, conversam com o aqueles que chamavam pelas costas de “nossos futuros patrões”. 

PRIMAVERA DE PRAGA

O documentário passa pela Primavera de Praga e pela entrada dos tanques soviéticos no País. As filmagens de desconhecidos mostram a melancolia da derrota do sonho. “A arma anticomunista é a tristeza de Berlim oriental”, lembra o filme. A comoção política com as vítimas policiais das revoltas (inclusive o estudante Edson Luís, morto pela ditadura militar brasileira) mostra que eles se tornam símbolos – e, como são símbolos de revoluções que fracassaram, se tornam vítimas em nome de quase nada.

“Eu sempre quis saber o que acontece quando os contrários se encontram”, comenta Moreira Salles. Quando O Intenso Agora parece mergulhar sem volta nos sentimentos individuais e coletivos, volta ao passado afetivo da sua família. A China que sua mãe viu, a revolução que os franceses criaram em 1968, a primavera dos tchecos, tudo se une como o momento em que a felicidade era tátil – e depois parou de existir.

No Intenso Agora, em última instância, é sobre o momento em que o presente se torna urgente. A sensação coletiva de euforia, de que há algo adiante ainda não revelado. Nesse sentido, não poderia ser mais contemporâneo; aborda, sem citar em nenhum momento, os protestos de rua de 2013 e a ressaca deles; é sobre a “desilusão morna” que parece ter abatido o Brasil nos últimos meses. Ressoa em suas cenas a sensação asfixiante de que a efusividade de um agora passou, e ninguém parece ter força para lutar por mais.

Últimas notícias