Histórias em Quadrinhos

No Recife, David Lloyd fala sobre as ideias por trás de V de Vingança

Pela primeira vez na capital pernambucana, o desenhista de V de Vingança diz acreditar na atemporalidade da HQ, que poderá ser adaptada para série de TV.

JC Online
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Publicado em 07/10/2017 às 21:20
Foto: Diego Nigro / JC Imagem
Pela primeira vez na capital pernambucana, o desenhista de V de Vingança diz acreditar na atemporalidade da HQ, que poderá ser adaptada para série de TV. - FOTO: Foto: Diego Nigro / JC Imagem
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A ultradireita avança na Europa. O nacionalismo excludente ressurge em várias partes do mundo. Talvez fosse mais apropriado criar uma história que fala sobre perda de liberdade e cidadania nos dias de hoje do que nos anos 80, quando a primeira edição de V de Vingança foi publicada pela extinta revista britânica Warrior.

Pelo menos é assim que pensa David Lloyd, desenhista e cocriador da HQ, roteirizada por Alan Moore e ambientada numa Inglaterra distópica e totalitária. O canal britânico Channel 4, responsável por atrações como Black Mirror e Misfits, parece ter enxergado o mesmo que o quadrinista e poderá transformar em série de TV a graphic novel – adaptada para as telonas em 2005, sob o comando das irmãs Wachowski.

Um dos grandes nomes dos quadrinhos, Lloyd ainda esteve de passagem pelo Recife nesta semana. Ele veio ao Nordeste através da Cultura Inglesa para participar da HQPB, convenção de HQs e cultura pop sediada em João Pessoa, na Paraíba, que acontece neste sábado (7) e domingo (8), onde o quadrinista vai bater um papo com os fãs e divulgar o seu projeto de publicação de HQs digitais, chamado Aces Weekly.

Com vocês, o mestre David Lloyd

JORNAL DO COMMERCIO – Lloyd, quando e em que circunstância o desenho chegou a sua vida? Você pensava em ser artista quando criança?

DAVID LLOYD: Sim, quando eu era criança os desenhos que eu fazia eram de desenhos animados, eu me inspirava nos desenhos comuns que havia nos jornais, como nas tirinhas e coisas do tipo, mas sobretudo eu estava interessado em desenhos de comédia. Eles não fazem mais isso, mas tinham tirinhas cômicas e eu gostava delas quando era criança e desenhava isso também. Só depois aos 12 anos que fui me interessar por histórias de quadrinhos de aventura e fazer esse tipo de coisa, mas antes disso eu gostava dos quadrinhos mais bestinhas.

JC – Como desenvolveu sua habilidade para o traço? Especializou-se em algum curso ou foi mais autodidata?

DL – Eu fui autodidata, acontece que não havia classes para quadrinhos. Eu sabia como contar uma história em quadrinhos e acho que isso tem muito a ver com o cinema. Eu assistia muita TV também, eu fui uma criança vidrada em TV, então eu acho que quando se faz isso você se adapta a aquele formato de contar história, pois é o que você vê. Em termos do meu estilo particular de desenhar, aquele traço simétrico que eu tenho se desenvolveu porque eu gosto de coisas geométricas, então eu criei um gosto por esse traço que acabou sendo beneficiado (por esse gosto). Eu me interessava também por personagens dramáticos e esse estilo ajudava.

JC – Sempre utilizou nanquim ou já chegou a fazer desenhos pelo computador?

DL – Sempre usei os métodos mais tradicionais, lápis, tinta, aquarela, em tudo que fiz. Já usei também técnicas de computador para fazer um plano de fundo, eu usei para colocar as letras (lettering), muitas pessoas hoje em dia usam para isso também. Eu gostaria de testar mais o trabalho digitalmente, mas leva tempo e eu teria que experimentar bastante, acontece que não tenho tempo para fazer isso agora, mas gostaria de tê-lo. Pessoalmente, eu acho que hoje em dia a maioria do trabalho digital copia o que se pode fazer no papel e eu não vejo muito sentido em fazer isso, é válido para questões de tempo, tenho colegas de trabalho que usam coisas como Megastudio e fazem isso de forma muito bacana. É para diminuir o gasto de tempo, porém para mim não diminuiria tempo nenhum, já que eu não sei usar direito.

JC – Você bebia em que tipos de fontes para compor o seu trabalho? Fale um pouco sobre suas referências literárias e cinematográficas.

DL – Essa lista é muito longa (rs), eu tenho uma listinha preparada que eu costumava copiar e colar para responder essa pergunta, se você quiser posso mandar para você a lista.

JC – Você tem um filme favorito?

DL – The Swimmer, de 1968, sobre um cara numa viagem ao seu passado. Eu gosto porque é sobre alguém que voltou e tentou achar algo, como uma busca por tempos melhores. É um ótimo filme.

JC – Onde produzia seus desenhos? Tinha um estúdio próprio?

DL – Eu não tenho um estúdio, sempre trabalhei de casa. Eu tenho uma mesa de desenho na minha cozinha que tem janelas enormes. Acho que não conseguiria trabalhar em um estúdio e também não vejo motivação para isso, pois é muito fácil acordar e já poder trabalhar. Tenho amigos que tinham estúdios e funcionava como se estivessem indo para um trabalho normal, iam durante a semana e tiravam o final de semana de folga, mas eu sempre gostei da facilidade de poder trabalhar em casa, lhe dá flexibilidade total.

JC – O silêncio era fundamental para a execução do seu trabalho ou você desenhava ouvindo música, por exemplo?

DL – Eu ouvia música, mas hoje em dia não ouço mais, pois preciso de muita concentração, mas quando ouvia gostava de todo tipo de música.

JC – Se você pudesse escolher qualquer personagem do universo dos quadrinhos para desenhar, qual você escolheria?

DL – Acho que escolheria o Nick Fury da primeira encarnação de Jack Kirby, mas isso era antigamente, eu já tentei desenhar, inclusive. Hoje em dia, não me interessaria por nenhum outro personagem.

JC – Quais são os seus quadrinhos favoritos?

DL – Eu não tenho muito tempo para ver o que está rolando, mas o que me inspirava quando criança era O Homem-Aranha, O Quarteto Fantástico... Hoje em dia eu não acompanho muito, nem olho muito essas coisas.

JC – Você também criou histórias de guerra e de horror, como Nightingale, J For Jenny... De todos os seus trabalhos, qual você mais gostou de fazer?

DL – Isso seria difícil, pois tenho muitas histórias pessoais e personagens com os quais eu me identifiquei, mas eu fiz um crime-noir thriller chamado Kickback, no qual eu escrevi e desenhei. Então, posso dizer que esse foi meu favorito, pois era só eu no processo todo, tomando todas as decisões.

JC – Você acha que trabalha melhor sozinho ou prefere ter alguém para trocar ideias?

DL – Eu trabalhei com uma amiga minha que fazia livros infantis, fizemos uma história juntos e foi legal, mas geralmente eu trabalho bem sozinho.

JC – Qual foi o seu primeiro trabalho como quadrinista? E qual foi o último?

DL – Meu primeiro trabalho foi um desastre (rs), pois eu fiz um personagem para um livro sobre um programa de TV americano, em 1976, chamado The Magician, e no livro ele vivia suas aventuras. Eu fui chamado para ilustrar esse livro e não sei por que eu fui mal nisso, eu não estava nervoso nem nada, mas foi muito ruim. No ano seguinte eu voltei para aquele mesmo editor e consegui fazer um trabalho totalmente diferente do primeiro, era um livro chamado Logan’s Run, que também era baseado em um programa de TV e o resultado ficou muito bom, gosto dele até hoje.

E o último foi uma tirinha que fiz para a Aces Weekly, para a primeira edição da revista, o título se chama Valley of Shadows.

JC – Certa vez, você comentou que a criação de Night Raven acabou te levando à V de Vingança. Quais são as principais semelhanças e diferenças entre eles?

DL – Bom, me pediram para produzir todo o visual de Night Raven e eu achei que eles usariam tudo que fiz, mas eles só utilizaram uma parte. Foi um personagem muito bom, ele marcava seus inimigos com um símbolo mortal, então quando ele os prendia ou matava todos sabiam quem tinha sido o responsável. O Night Raven era um vigilante, um personagem bastante forte. Mas a história se passava nos anos 20, na era da proibição nos EUA, então era um cenário bastante diferente de V de Vingança. E quando V chegou eu não queria mais usar aqueles traços mais fortes que usava para representar a época dos anos 20. O universo de V foi uma das primeiras coisas que fizemos.

JC – Qual das suas ilustrações em V de Vingança você mais se orgulhou em fazer? Existe alguma cena ou algum quadro em especial?

LLOYD – Não sei se é a que me orgulho mais, mas a que eu mais gosto é esta (mostra a cena em que Evey está nos braços de V), porque é uma composição muito boa e tem muita emoção. Não posso dizer que é exatamente minha favorita, mas é uma que gosto muito. Acho que conseguiram retratar essa cena muito bem no filme. Nos primeiros trabalhos de V há coisas que eu até mudaria, que eu gostaria de redesenhar, pois na época eu não estava tão bom.

JC – Além de ilustrar, você também foi um dos responsáveis por colorir V de Vingança na edição lançada pela DC Comics. O que achou do resultado? Prefere o quadrinho colorido ou em preto e branco?

LLOYD – Eu só colori algumas páginas, pouquíssimas e no início, pois eu não conseguiria colorir a coisa toda, então contratamos duas pessoas para nos ajudar. Eu ajudava, mas na maior parte do tempo só dava sugestões a eles, que fizeram um ótimo trabalho. Eu não tenho uma preferência entre colorido e P&B. Nos primeiros, não tínhamos dinheiro para colorir. Temos muitos fãs que gostam do P&B e queriam a edição assim, mas acontece que quando a DC publicou, o diretor executivo perguntou como eu queria que fosse e eu achei que sairia melhor colorido. Eu que escolhi, pois eu sei que o colorido chama mais pessoas, é mais comercial, e se você está fazendo uma história querendo que muitas pessoas leiam você escolhe aquilo que vai atrair mais gente. Eu sabia que as cores iriam ter a ver com a história, que seguiriam a narrativa, seriam nos tons adequados. Naquela época tinham livros P&B que faziam sucesso, como os das Tartarugas Ninjas, mas eu achava que era uma tendência do momento, e optei pelo que chegaria a mais pessoas, desde que com integridade.

JC – Como surgiu a ideia de representar Guy Fawkes através da máscara de V? Qual foi sua intenção ao resgatar essa personalidade histórica e incorporá-la na narrativa?

LLOYD – Era uma ideia maluca, pois o conceito inicial era de usar um gorila normal, mas queríamos algo teatral, então pegamos várias referências de filmes, como Doctor Phibes (1972), mas precisávamos de algo diferente. Também por razões comerciais precisávamos atingir um grande público, e no aspecto político e sociológico queríamos ter aquele personagem colorido que trouxesse leitores, pois de nada adiantava ter uma boa mensagem se ela não fosse atrair pessoas. Testamos figurinos e ideias diferentes, mas nada funcionava bem. Daí, eu tive a ideia maluca de trazer de volta Guy Fawkes, pois ele era um revolucionário e nós íamos contar uma história sobre um revolucionário. Logo, como personagem, como herói, ele adota a missão, a aparência e a persona de Fawkes, e se você vai ter alguém que é a ressurreição ou reencarnação de Fawkes precisa que também se pareça com ele. Então, a máscara veio para representar o que conhecemos dele, ou pelo menos a evidência do que ele fez.

JC – V de Vingança descreve uma situação política que nós continuamos vendo nos dias de hoje. Se tivessem criado o quadrinho atualmente, fariam exatamente a mesma coisa?

LLOYD – Provavelmente sim, acho que sim, pois o fascismo está crescendo, o neonazismo também, então nós pensaríamos talvez que fosse ainda mais apropriado fazer V de Vingança agora do que antes. Mas essa pergunta sempre é difícil, tudo depende do tempo, quando se cria algo você realmente precisa pensar sobre tudo que o envolve e acho que essa obra é atemporal, por isso que acho que continuamos falando dela hoje, pois é relevante hoje como era antes e é uma ótima história.

JC – O que você achou da adaptação de V de Vingança para o cinema? O filme fez jus ao quadrinho?

LLOYD – Eu achei que o filme foi bom, como filme de cinema eles fizeram um bom trabalho, uma boa adaptação. Acho que eles representaram o principal do livro que é sobre individualidade e integridade. Quando eu falo sobre isso eu digo que é outra versão do livro, pois mudaram algumas coisas radicalmente, entretanto, eles mantiveram o principal, a mensagem principal sobre ser verdadeiro com si mesmo, não seguir a massa, pois isso é o que leva as coisas a saírem do controle, as pessoas seguindo cegamente a massa ao invés de seguirem sua própria consciência. Se mais pessoas fizessem isso teríamos um mundo melhor, mas infelizmente é isso que as pessoas fazem.

JC – A máscara de V vem sendo usada por manifestantes ao redor do mundo para mostrar a indignação com seus governos. O que prova que a HQ influenciou não apenas a cultura pop em si, mas efetivas ações políticas. Isso era esperado?

LLOYD – A gente não espera que essas coisas aconteçam, mas acho ótimo. A máscara realmente representa o que o livro retrata que é a resistência à tirania, a luta contra o fascismo, contra a opressão. Então, você pode usá-la como um símbolo em qualquer lugar em que se tenta manifestar contra isso, e a máscara representa o que o livro fala.

JC: Tem alguma outra obra sua que você gostaria de ver adaptada para o cinema?

DL: Kickback! Eu já pedi inclusive para alguém fazer o roteiro para ele, eu adoraria vê-lo no cinema, faria um filme incrível.

JC – É a sua primeira vez no Recife? Tem algum lugar que você queira conhecer por aqui?

LLOYD – É minha primeira vez no Recife, mas já estive bastante no Brasil, já fui para São Paulo, Curitiba, Rio... Eu estou perto da praia e já soube que tem coisas legais para fazer como turista. Devo só descansar mesmo, mas já soube que tem ótimos lugares para conhecer.

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