Histórias em Quadrinhos

Precisamos falar sobre as mulheres quadrinistas

Mulheres roteiristas, desenhistas, letristas e coloristas de HQs ainda enfrentam o machismo em busca da visibilidade no mundo geek.

JC Online
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Publicado em 06/11/2017 às 12:24
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Mulheres roteiristas, desenhistas, letristas e coloristas de HQs ainda enfrentam o machismo em busca da visibilidade no mundo geek. - FOTO: Foto: Divulgação
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Onde estão, quem são e o que estão fazendo as mulheres quadrinistas? Sem dúvidas, há muito mais mulheres que fazem quadrinhos do que a maioria das pessoas conhece. Seus trabalhos estão aí para serem lidos e apreciados. Acontece que muitos estão disponíveis somente online e de forma independente, em virtude de estarem inseridos num mercado editorial ainda machista. Aliás, num universo geek ainda sexista. Mesmo que isso esteja mudando, não é à toa que existe uma estranha discrepância entre o número de mulheres quadrinistas e a atenção que elas recebem. Se essas roteiristas e desenhistas não estão sendo publicadas ou estão ficando de fora das premiações especializadas, não é por falta de representatividade, mas de reconhecimento. De visibilidade.

Uma das poucas representantes da nona arte em Pernambuco é Roberta Cirne, roteirista e desenhista das HQs de terror Sombras do Recife, publicadas no site homônimo. Além de cuidar de toda a parte literária e do design, a quadrinista também faz um resgate histórico da capital pernambucana. “A pesquisa que estou fazendo com os quadrinhos já existe há 19 anos, mas nunca consegui publicá-los por meios tradicionais”, declara, ao mencionar que a internet teve papel fundamental no seu trabalho. “Tudo o que produzi foi lançado online. Isso fez com que o projeto chegasse a todo Brasil, de um jeito que ainda me surpreende”, afirma. Atualmente, Roberta se dedica inteiramente aos quadrinhos, mas nem sempre foi assim. “Me formei como arte educadora e passei a dar aulas para me sustentar, mas sempre quis ser dona do meu próprio projeto. Hoje, não leciono mais graças ao poder da internet na minha carreira”, conta.

Germana Viana, quadrinista pernambucana radicada em São Paulo, por sua vez, teve a oportunidade de trabalhar no mercado de HQs antes de começar a fazer os seus próprios quadrinhos. Ela foi e é designer e letrista (a pessoa que coloca as letras nos balões e desenha ou redesenha as onomatopeias) de diversas publicações de empresas como a Panini, a Riot e Jambô editora. Ainda no ramo da arte sequencial, Germana trabalhou como agente de desenhistas para o mercado americano, auxiliando o Joe Prado, na Art&Comics. O negócio é que quando se é mulher e quadrinista, o ambiente de trabalho pode se tornar algo particularmente inóspito. “Eu já ouvi caras dizendo ‘nossa, você desenha feito homem’, como se isso fosse um elogio. Também me aconteceu o fato de um colega, numa feira de quadrinhos, sair da mesa dele, atravessar a área dos artistas e puxar um leitor que estava falando comigo para ver o material dele”, comenta.

Recentemente, Heather Antos, editora da Marvel Comics, postou uma selfie em seu perfil no Twitter, onde ela e colegas de trabalho estavam tomando milkshake juntas, o que intitulou de “Marvel Milkshake Crew”. O que parecia ser uma simples foto de rotina virou alvo de ataque nas redes sociais. Essas mulheres receberam insultos, boa parte de cunho sexual, por alguns homens que atribuíram a elas uma suposta queda de qualidade nos quadrinhos da Marvel. Quem traz luz à essa história é a roteirista paulista Carol Pimentel, única mulher trabalhando na redação da Panini/Marvel. “O mundo nerd ainda é cruel com as mulheres lá fora, mas, por outro lado, vemos trabalhos lindos como o da iraniana Marjane Satrapi, autora de Persépolis, HQ que deveria ser lida por todas as mulheres do mundo”, pondera. A própria Carol, inclusive, foi questionada por sua competência profissional. “O susto veio de mensagens inbox com algumas agressões logo nos primeiros meses que eu estava no cargo de editora aracno-mutante. Foram poucas, mas ainda assim assustadoras”, revela a editora, que cuida de uma linha completa de publicações do Homem-Aranha.

Pesquisadora de representação de gênero em HQs, Rayza Bazante esclarece que o imaginário negativo a respeito das mulheres nos quadrinhos ainda existe porque “grande parte dos homens leitores do gênero não aceita o fato de haver mulheres habitando o universo geek e ainda ilustrando ou editando quadrinhos”. Seu posicionamento é embasado no livro que utiliza em sua pesquisa, intitulado Homens do Amanhã - geeks, gângsteres e o nascimento dos gibis, de Gerard Jones. Em nota à edição brasileira, essa obra traz as seguintes palavras: “Tanto ‘nerd’ como ‘geek’ são, de maneira geral, termos usados para definir indivíduos do sexo masculino. Até porque o mundo dos nerds é, por princípio, um mundo masculino, onde mulheres não entram”.

Problema sócio-cultural

Para Rayza, a explicação para esse impasse é inteiramente sócio-político/cultural. "Na infância, os meninos eram instigados a ler histórias cheias de aventura, heroísmo e ficção científica, enquanto as garotas eram instruídas a ler fábulas e contos de fadas, as quais servem como um verdadeiro manual para criar a mulher 'bela, recatada e do lar'", explica, enfatizando que é preciso também entender a origem dessa forma de literatura. “As HQs basicamente surgiram nos fandoms, onde só tinham garotos, nos anos 1920. Depois vieram os Syndicates, que eram empresas com dinheiro para comprar, produzir e distribuir o material que era criado. Esse meio também era dominado por homens”, pontua a pesquisadora. Tudo isso influenciou na indústria das HQs. Afinal, quadro a quadro, as mulheres eram criadas e representadas majoritariamente por eles. “Talvez esse fato tenha relação com o imaginário que os quadrinhos são literatura para garotos”, acredita Rayza.

É por essas e outras que algumas artistas desistem. Abandonam os quadrinhos e buscam caminhos menos áridos. “Boa parte das quadrinistas mulheres ficam em casa e compartilham seus trabalhos apenas com amigas. Que eu saiba, apenas umas três ou quatro (a maioria ilustradoras) estão atuando de forma visível no Recife”, constata a criadora do Sombras do Recife, Roberta Cirne. Em sua opinião, o modo como a indústria categorizou as HQs teve grande parte na questão da problemática de gênero que envolve o meio no País, geração após geração. “Havia quadrinhos para meninas até certa idade, depois apenas super-heróis, o que focava no público adolescente masculino”, relembra Roberta sobre o que encontrava nas bancas e livrarias em sua infância. É uma reação em cadeia. Se as meninas eram instruídas a lerem contos de fadas, certamente os bibliotecários e livreiros acabariam separando os livros de autoras ou os considerando como “feitos para meninas” quando eles organizavam suas estantes. Mas, afinal, o que define uma mulher para se ter um universo feminino? Se gêneros são construídos, nada é intrinsecamente feminino. É aí que o mercado erra: quando considera essa produção como gênero narrativo e a deixa de fora do universal. As publicações tem que olhar para os artistas da mesma maneira. E não de acordo com o nome ou gênero de cada um.

Na década de 1960, algumas mulheres já coloriam ou arte-finalizavam HQs, mas usavam somente as iniciais de seus nomes com o intuito de disfarçá-los no meio das demais assinaturas de homens que apareciam nos créditos. Petra Goldberg, por exemplo, era creditada como P. Goldberg nas histórias do Drácula. Essa já era uma marca de como a indústria se comportaria por anos. Até mesmo a Sheena, uma das personagens mais conhecidas da Era de Ouro das HQs, fica no imaginário geek como se tivesse sido produzida apenas por homens. “Sheena já chegou a ter muitas mulheres envolvidas em sua revista, como a Ruth Roche e a Jean M. Press. Elas trabalharam como produtoras para a Fiction House (1920-1950), editora americana que ficou conhecida por ser a que mais contratou mulheres durante a Segunda Guerra Mundial”, lembra Rayza, citando mulheres quadrinistas pioneiras como Jackie Ormes, que criou a tirinha Torchy Brown in Dixie Harlem entre 1937-1938; Dale Messick, criadora da personagem jornalista Brenda Starr nos anos 1950; e June Tarpé Mills, a primeira mulher a escrever e ilustrar uma HQ com uma super-heroína, que era a Miss Fury (Mulher Pantera no Brasil).

A tradição de colocar arquétipos em personagens tampouco ajudava as mulheres a saírem da invisibilidade no meio das HQs. “Enquanto os personagens masculinos costumam representar coragem, justiça, sacrifício, paradigma moral e concretude social, as personagens femininas sempre seguiam os arquétipos de donzela, mãe e anciã, mesmo quando ela é guerreira”, constata Rayza. Esse imaginário estereotipado fez com que os homens não conseguissem se identificar com HQs protagonizadas por mulheres, o que ocorre até hoje. “Eu, enquanto mulher, não me identifico com esse tipo de personagem, imagina os homens”, declara Rayza. Por isso é preciso fazer circular as experiências e as criações das novas artistas e manter a memória daquelas que fizeram parte dessa história ainda pouco democrática.

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