Histórias em Quadrinhos

HQ 'Sem Dó' é a síntese perfeita da sociedade paulistana dos anos 1920

Carregada de simbolismos, a HQ da estreante Luli Penna impressiona pelas minúcias visuais.

JC Online
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Publicado em 28/12/2017 às 14:55
Foto: Divulgação/Editora Todavia
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Chegamos na época do ano em que retrospectivas e expectativas se tornam pauta. E tratando-se de histórias em quadrinhos, o livro de estreia da paulistana Luli Penna, Sem Dó, não poderia ficar de fora dessa lista de produções que merecem ser lembradas. Publicada em outubro pela editora Todavia, a HQ, que pode ter o seu enredo resumido a uma “bela e trágica história de amor”, como sintetiza a própria autora, impressiona principalmente pela suas minúcias visuais. Pelo retrato fiel e paradoxalmente abstrato de uma São Paulo dos anos 1920, uma cidade marcada pelos efeitos da modernização, mas habitada por uma sociedade ainda conservadora.

Para que os desenhos tivessem a cara das fotos antigas da capital paulista, a autora fez questão de que o preto e branco fossem bem contrastados. O que caiu como uma luva no modo narrativo da história, desenvolvida como se fosse um filme mudo. Referência que pode ser constatada na ausência de balões de diálogo, substituídos por quadros pretos com as falas escritas em branco, exatamente como apareciam na era do cinema sem som. “Fazendo os primeiros esboços ainda no computador, percebi que não ia conseguir nada do que queria se não mudasse de técnica. Foi só pegar no pincel para fazer o primeiro teste a nanquim para ficar maravilhada e perceber que era aquilo exatamente o que eu queria”, afirmou a autora, enfatizando que o maior presente que o Sem Dó lhe deu foi lhe tirar da zona de conforto.

Dotado de um estilo estético ousado e único, o resultado da graphic novel, inclusive, destoa muito do trabalho que Luli sempre desenvolveu como ilustradora e cartunista. Acontece que ela levou sete anos para publicar o quadrinho, contando desde o dia em que fez seu primeiro esboço. O que não condiz com os prazos curtos requisitados pelos jornais e revistas, onde ela publicou seus trabalhos. E essa falta de tempo que a levou a preferir fazer tudo pelo computador foi também o motivo pelo qual ela precisou se debruçar por um longo período sobre um mesmo projeto. “Tenho uma vida confusa de freelancer, de mãe e de mulher. Todos esses anos em que passei fazendo o Sem Dó foram anos em que fiquei tentando cavar um tempinho aqui ou ali para desenhar mais um quadrinho”.

Apesar de trabalhar com ilustras e cartuns, Luli é formada em letras. Sua formação em desenho e artes plásticas é quase nula. O que é de espantar, tendo em vista que ela desenvolveu um traço impecável e uma perspectiva arrojada por pura intuição. “No caso do Sem Dó, diria que tudo foi feito de um modo meio selvagem, porque eu realmente não tinha a menor ideia de como construir uma HQ, não sabia nem como fazer um grid”, revelou, contando que chegou na editora com os originais embaixo do braço, morta de vergonha. “Com exceção dos desenhos de página inteira, todas as páginas eram uma colcha de retalho, com os quadrinhos todos colados um ao lado do outro. Costumo dizer que usei papel, nanquim e principalmente tesoura, porque o que eu mais fiz durante o processo foi remontar as páginas”.

Foto: Divulgação/Editora Todavia
Capa da HQ Sem Dó, que conta uma bela e trágica história de amor ambientada na São Paulo dos anos 20 - Foto: Divulgação/Editora Todavia
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A cena de Lola passando roupa é a favorita de Luli: "Acho bonita a passagem do amassado para o liso" - Foto: Divulgação/Editora Todavia
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Os protagonistas Lola e Sebastião flertando através da janela, o que era típico dos amores proibidos - Foto: Divulgação/Editora Todavia
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A "dança-andança" dos chapéus pelas ruas da cidade traz um dos pontos de vista mais autênticos da HQ - Foto: Divulgação/Editora Todavia
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O chapéu acaba sendo a síntese perfeita dos próprios hábitos da sociedade paulistana daqueles tempos - Foto: Divulgação/Editora Todavia

Sem Dó traz a história de Lola e Sebastião, um casal que se apaixona nessa São Paulo em plena transformação. Mas não é somente isso. É sobretudo um passeio por seus bairros, cinemas de rua, propagandas e jornais da época. Um olhar nostálgico para um passado rico em detalhes e tradições - às vezes tão cruéis. Lola é a típica moradora da cidade, o que significa dizer que ela teve toda sua vida moldada pelos pais. Mas como nem tudo sai como planejado, ela é também aquela mulher que busca por um dia a dia em que o prazer esteja presente. Todo tipo de prazer, desde andar nas ruas e brincar com um zootrópico (brinquedo óptico) até paquerar e se entregar a alguém. “O que eu queria que ficasse muito claro ao longo de toda essa história de amor era a diferença entre a liberdade sexual dos homens e das mulheres, radical naquela época, mas inteiramente presente ainda hoje”, esclareceu Luli.

Uma curiosidade é que ela ainda fez uso de um recurso que pode muito bem passar batido, com o intuito de enfatizar como o tema continua atual. Na cena de abertura de cada capítulo, ao lado da caixa de biscoitos com fotos velhas, flores secas e outros cacarecos, Luli colocou um rádio tocando músicas dos anos 70 que tivessem a ver com o que seria narrado logo a seguir. Outro detalhe quase imperceptível pode ser visto na passagem do dia em que Lola combinou de ir ao cinema escondida com Sebastião. Quando ela está prestes a servir café à patroa, a convidada sentada na sala segurando um desenho é nada mais nada menos do que Tarsila do Amaral.

Ao fim do livro, fica claro que a trama é narrada por Pilar, a irmã meio “nerd” de Lola, que passa o dia bordando, tentando encontrar algo que dê sentido para a sua vida inteiramente sem graça. Na surdina, ela fica só assistindo a tragédia amorosa acontecer. “Até o último momento de entregar o livro, mudei o fim várias vezes porque não sabia o que fazer com Pilar. Não queria que ela fosse a irmã injustiçada, invejosa e má”, declarou Luli. O mais interessante é que essas duas personagens femininas foram baseadas em avós e tias-avós da autora; o pai e a mãe delas em bisavós que ela não conheceu; e o herói num personagem real que encontrou no livro O Crime do Restaurante Chinês, de Bóris Fausto.

Histórias de família

O enredo de Sem Dó nasceu de uma mistura do que Luli ouviu de uma tia-avó com trechos de histórias que outras avós tinham lhe contado mais alguns que ela inventou ou retirou de livros sobre a época. A princípio, a autora iria contar a história do seu avô e do seu tio-avô, filhos de imigrantes espanhóis que se tornariam arquitetos na década de 1950. “Enquanto desenhava e continuava pesquisando sobre o começo do século passado, essa minha tia veio com a história das irmãs dos dois e imediatamente decidi: ‘não quero contar a história dos avós famosos, não, quero contar a história dessas duas mulheres completamente obscuras’”, relatou Luli.

Mas antes mesmo de saber para onde a história ia, a autora já sabia em que lugares ela passaria. “Eu ia marcando os livros de fotos antigas de São Paulo com post-its coloridos nas páginas em que havia uma casa, uma calçada, um bonde que eu queria que aparecesse em alguma cena”, contou. No fim das contas, a cidade e São Paulo e suas ruas são tão protagonistas quanto as outras personagens da história. Nas sequências em que Lola e Sebastião flertam, por exemplo, a cidade participa da cena amorosa tanto quanto eles, com seus cruzamentos, bondes e lampiões. “A cena em que eles se olham pela janela, por exemplo, foi toda desenhada a partir do relato de uma avó sobre um namoro de menina. O rapaz ia todas as noites pra baixo da janela dela e ficava andando de um lado a outro da calçada durante horas, sem que os pais dela soubessem”.

Essa história, inclusive, carrega o simbolismo de um dos pontos de vista mais autênticos do Sem Dó: a ideia de uma “dança-andança” de chapéus pela cidade. É que quando o rapaz passava por debaixo do lampião, tirava o chapéu para cumprimentar sua amada. O acessória acaba sendo a síntese perfeita daquele espaço-tempo, dos próprios hábitos da sociedade.

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