GARANHUNS - Quando os versos "Ela é do tempo do Bob, lá do Pina de Copabacana...." tomaram conta do espaço auditivo da Praça Mestre Dominguinhos, fomos convidados a visitar mentalmente o finalzinho da prolífica década de 1990 em Pernambuco, quando um poeta parecia brotar em cada beco, e um Otto pouco mais que menino refundava a poética do mangue com Samba pra burro (1998).
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Corte rápido de volta para o presente. Cinco discos depois, dono de uma gramática artística muito própria, Otto confirma ter se tornado o que anunciava, no primeiro disco, que viria se tornar: fonte e veículo de uma musicalidade imediatamente intradérmica e imagética, corpo e mente, ponto de convergência em alta temperatura de tambores e emboladas com sintetizadores, guitarras, poesia existencialista e uma paixão que não teme a própria cafonice necessária.
Showman desde os serviços prestados como percussinosta da mundo livre s.a, Otto é voragem. Quando canta, o público, cúmplice, parece encontrar sentido para sentimentos e pensamentos ainda difusos ou algo esquecidos. Esta noite de terça no Festival de Inverno de Garanhuns pertenceu a ele - e a sua trajetória: com o show da turnê Recupera, iniciada ano passado, o "Galego" tem reeditado temas poucas vezes executados em shows ou há muito tempo sem versão ao vivo.
TV a Cabo, por exemplo, faz imediatamente quaquer um recuperar o sentido do que foi ter sido testemunha da adolescência da música contemporânea de Pernambuco. "Acho interessante, poder tocar, agora mais maduro, canções que gravei e cantei muito jovem", dizia Otto. "Afinal, lá se vão mais de vinte anos desde que essa coisa toda da música começou (com o manguebeat) lá em Recife", comentou, à tarde, depois da passagem de som.
Esta noite, o show teve um brinde. Como o baterista Hugo Carranca machucou o punho dias antes, Pupillo estendeu sua permanência em Garanhuns para assumir a batera na Jambro Band que acompanha o cantor. E outro, de paz. Depois de uma rápida participação no show da Combo X, o projeto de Gilmar Bola Oito no primeiro dia do Palco Pop do Parque Euclides Dourado mais cedo, Otto fez questão e trouxe e o integrante em litígio da Nação Zumbi para uma participação em seu show. O grande público nem percebia, mas nos bastidores era esse o assunto: Otto selava, simbolicamente, um acordo de paz com o músico demitido pela empresária da banda por "falta de profissionalismo" e que briga, na Justiça, não só pelo direito de tocar como de ter parte da propriedade industrial da marca NZ. Meio tímido, Bola Oito dividiu o microfone em Cuba ("Se Cuba não vai ao Papa...) e, com o auxílio do percussionista Marco Axé, os três cantaram uma versão dilatada de Lama ao Caos. A canção de Chico Science levantava, ali, a plateia com a força de um hino.
Otto ignorou o frio, tirou a camisa e fez do banho de água mineral sua usual liturgia de palco. Falante e rebolativo, defendeu a democracia, detratou - aos gritos de "Fora, Temer" vindos da plateia - o presidente interino e gritou pelo respeito às diferenças de gêneros sexuais. Com a lei municipal que exige o fim dos eventos públicos antes da uma da manhã, e a polícia já ameaçando intervir, o show foi encerrado com quatro das músicas previstas a menos. Mas, intensa como a canção Seis minutos cantada aos gritos pela plateia como se recuperasse a própria vida, a apresentação teve uma volumetria de não deixar perceber qualquer corte no repertório.
Logo antes de Otto, a praça virou pista de baile com o lançamento oficial do segundo disco da Academida da Berlinda, Nada sem ela. A banda que começou como segundo projeto de Alexandre Urêa (voz e timbales), Gabriel Melo (guitarra), Tiné (voz, pandeiro e maraca), Irandê César (bateria e percussão), Hugo Gila (Microkorg) e Tom Rocha (percussão e bateria), todos engajados em outras bandas, virou outro Lado A na carrreira dos meninos. Com a musicalidade de orquestra que é, funde vários ritmos, sotaques latinos, com uma marcação percussiva malemolente para fazer cheio qualquer salão. Foi o que aconteceu com a praça.