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As mulheres e o feminismo em 'Princesa': entrevista com Salma Jô, do Carne Doce

Segundo álbum da banda goiana é uma reflexão pessoal sobre a mulher na sociedade atual

GGabriel Albuquerque
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GGabriel Albuquerque
Publicado em 04/09/2016 às 9:30
Foto: Felipe Gabriel/ Divulgação
Segundo álbum da banda goiana é uma reflexão pessoal sobre a mulher na sociedade atual - FOTO: Foto: Felipe Gabriel/ Divulgação
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Ao lançar seu primeiro álbum em 2014, o Carne Doce emergia como um expoente da nova e instigante cena musical de Goiânia, com Boogarins, Kastelijns, Abdala e outros. Após uma série de shows pelo País (incluindo no Coquetel Molotov do ano passado), a banda ganhou coesão, amadureceu a proposta e agora lança o seu segundo álbum: Princesa, uma reflexão poética e particular sobre a condição da mulher na sociedade contemporânea e desigualdade de gênero. Em entrevista, a vocalista e compositora Salma Jô fala sobre a construção do trabalho.

JORNAL DO COMMERCIO – O primeiro álbum, Carne Doce (2014), não tinha um argumento, um conceito. Princesa parece ser construído a partir de um tema mais delineado, em quase todos os momentos tocando em questões ligadas a mulher e/ou feminismo. Pode fazer uma comparação do processo criativo dos dois trabalhos? 

SALMA JÔ – O primeiro álbum tinha uma necessidade de explicar porque a gente tá nessa, porque é que a gente quis se meter a ser artista, o que é que a gente tem pra oferecer. Nessa primeira apresentação “ao mundo” você pode escolher um detalhe, pode escolher uma vida inteira pra contar, na linguagem que quiser, você tem vários questionamentos guardados pra sacar naquele momento, por isso essa ansiedade e essa falta de conceito. No segundo disco já tem uma necessidade de responder a um “tá, mas e aí?”. Isso casou com esse momento do movimento feminista de reivindicar urgentemente o lugar de fala, a história individual de cada mulher, a descoberta sexual, psicológica, social de cada mulher, de generalizar as denúncias particulares, de valorizar e incentivar todas as denúncias em todos os graus, de elevar o depoimento pessoal ao máximo. Todas as mulheres ao meu redor estiveram refletindo sobre isso. Eu idem. 

Então tinha o “tá, mas e aí” pendendo sobre o segundo disco, e tinha esse “e você feminista?” pendendo sobre mim. Se eu tenho essa vocação pra assuntar sobre política de uma maneira íntima, como que eu não ia falar sobre isso? 

JC – O título, a faixa-título e a capa do álbum parecem sugerir esta “princesa” como uma imagem-conceito que permeia todas as canções do álbum? Como surgiu a ideia?

SALMA – Vi essa arte no perfil da Beatriz Perini. Além de ser da nossa turma, acho ela uma artista foda, nas colagens, nas fotos. Ela é dessas pessoas que é toda artista, que se veste, pensa, que tudo que cria é autêntico, que vira uma personagem, uma referência de estilo pra cena. Aqui em Goiânia ela é assim. Eu já cogitava usar alguma coisa dela, e desde que eu vi essa imagem ela ficou registrada como uma possibilidade de capa. É forte, tem impacto imediato, e acho que sugere bem essa ideia da princesa anônima que são várias mulheres, que têm traumas e desejos e contradições diversas, às vezes numa só mulher. 

JC – Numa entrevista ao blog Miojo Indie sobre a música Artemísia você falava sobre o “receio” da noção de “hino feminista”, preferindo criar a partir de um fato autobiográfico. Em Açaí, um verso menciona “a opinião que eu tenho que dar”. Para você, o âmbito pessoal é também um universo político? Como isso se reflete na música do Carne Doce?

SALMA – Essa é uma discussão que está aí no meio das letras mesmo, é um exercício meu. Em Falo totalmente, mas em várias outras músicas, também do primeiro disco. Me interessa a política, mas a inspiração sempre flui melhor comigo se o ponto de partida é pessoal, ou se eu me coloco e defendo totalmente a personagem. Me parece que nas letras mais felizes que eu fiz, usei a mesma artimanha: pegar uma ideia egoísta e extrema e desenvolver de forma a defendê-la totalmente num viés quase público: “vem me fuder” [em Passivo, do primeiro álbum] ou “não vai nascer porque eu não quero” [no single Artemísia, sobre aborto e direitos da mulher]. 

JC – Falo menciona o machismo/sexismo no meio musical. A letra também surgiu de uma experiência autobiográfica? Ainda há muito machismo no espaço da cena independente? 

SALMA – Ah, sim, normal. Mas eu empresto isso pra essa música mais pra refletir sobre esse momento do movimento feminista mesmo, de que eu falei. Eu sei que muita gente entende Falo como um hino e só, e isso pra mim demonstra que eu não fui muito feliz nela como letrista. Porque eu queria ilustrar esse momento, esse movimento, com os gritos de guerra e símbolos que ele usa (essa ameaça de capar, de matar o agressor), com sua justiça, mas também com as contradições e exageros que carrega. Não é uma música de um discurso racional, porque não fazia muito sentido ser racional, fez sentido emprestar minha raiva, meu ódio, minha irritação, minha vontade de vingança mais do que minha vontade de justiça.

Também sei que muita gente já vai no disco com esse preconceito de que por ter essa pegada feminista ele é uma grande denúncia, uma grande compilação de denúncias e traumas e só. Li jornalista escrevendo que Princesa, a música, era sobre assédio (e nada mais). Achei triste. Parece que se sou mulher, se o disco tem uma pegada feminista, se sou educada, se sou indie, classe média, eu provavelmente não falaria sobre sexo de uma forma tão vulgar e brega que não fosse para fazer uma denúncia. Eu devo ser a vítima ideal. Sinto que muitos jornalistas vão interpretar o disco dessa forma superficial. Não seria isso uma forma de machismo?

JC – A música tem servido de plataforma para diversas reflexões políticas sobre a mulher na sociedade atual – vide Mulher do Fim do Mundo, de Elza Soares, Selvática, de Karina Buhr, e agora Princesa. Como musicista, acredita que a música tenha uma particularidade para tratar destes assuntos? Uma característica que as outras artes não têm?

SALMA – Nem sei, tava pensando aqui se a música não seria o pior meio pra tratar de política. Porque ouvir um discurso em melodia não me parece tão atraente quanto assisti-lo num filme, numa esquete, ou ver um quadrinho, uma foto... com sorte, ela pode ser cantada e tocada por aí, se for dançante. Pra mim, a grande dificuldade de fazer música hoje é que você tem que concorrer com um feed de produtos muito mais estimulantes, de prazer rápido e garantido. 

JC - É curioso como Carne Lab destoa das demais faixas do álbum. Como surgiu a ideia de inclui-la no disco? E como você a enxerga em relação às outras músicas? Como elas dialogam?

SALMA - A gente levou ela pro estúdio sem terminar mesmo, é uma jam. Acho que eles nunca tinham tocado ela tanto tempo, e foi mesmo uma das melhores vezes. Ela parece uma concessão minha, até pelo sermão no final. Eu chego ali no final tipo uma mãe pagando sapo e lá em São Paulo algumas vezes foi assim. Eu gosto disso. Ainda me pergunto se ela não só atrasou o CD, mas acho que ela conta um pouco essa historia dos bastidores e também põe em cheque a minha autoridade. Sei lá. 

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