Totemizada num trono-altar, as cortinas se abrem, ela aparece, alongada por uma saia-cenário de mais de 20 metros até a boca da cena. Quando canta, cabeleira roxa, o olhar acentuado pelo contorno negro, qualquer fragilidade fica nas coxias. Não é apenas a voz grave de flexibilidade metafísica. Mas, espírito do tempo que é, todas as vozes de um Brasil que se recusa a ser subterrâneo. Elza canta com a voz das diásporas cotidianas. Dos negros mortos antes dos brancos. Dos dissonantes da heteronormatividade. Dos torturados do machismo. É isso o que Elza da Conceição Soares, carioca do mundo, musa de Louis Armstrong e voz do milênio para a BBC londrina, oferece hoje, no Baile Perfumado.
"A Mulher do Fim do Mundo" é o nome do show com que Elza, 79 quase 80 anos, reafirma a sua como a voz mais contundente da música brasileira contemporânea. Limitada nos movimentos após um trauma de coluna, é amparada por uma solução cênica que só reforça o simbolismo de entidade mundana, polifônica. “A saia foi uma ideia da (diretora) Anna Turra e foi de encontro a tudo que o show conta. Imagine uma “luxuosa” saia de sacos de lixo. É o povo usando suas ferramentas e possibilidades para deixar a vida bonita, para encher os olhos, para derrubar os conceitos atrasados do que é agradável aos sentidos”, diz ela, numa entrevista a partir do Rio de Janeiro, antes de vir ao Recife.
O cenário é também discurso: “Eu continuo gritando essa realidade. O negro continua desvalorizado, a ter que provar mais que qualquer outra raça que é bom no que faz e, olha, não se trata apenas de cor da pele. Seria injusto com a parcela dos amarelos, ruivos, pardos, brancos, que se conscientizaram, que enxergam diferenças. Sinto que pouca coisa ou quase nada mudou do " Cóccix até o pescoço" até "A Mulher do Fim do Mundo". Tenho que continuar gritando até que alguém ouça”, diz Elza, citando o disco em que, musa armada, denunciava “que a carne mais barata do mercado é a carne negra”.
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Impressiona como este primeiro dos 34 discos de Elza de canções inéditas, consiga adesão tão imediata. Seus sambas de tempero roqueiro, funkeados, ganham o coro da audiência com um certo o sotaque das periferias. Corte e cicatriz, beleza e contundência política estão numa simbiose de rosa e espinho - percam esse show, visto no Festival de Inverno de Garanhuns, e terão perdido o show mais contundentemente poético do Brasil corrente. Um show em que metáfora e realidade são indissociáveis, “um parto de cada sílaba”, como classificou o músico e parceiro José Miguel Wisnik. “Não me fala às dores. Oswald de Andrade, Wisnik, Douglas Gemano, Marcelo Yuka, Antônio Maria, Chico Science e todos esses e outros gênios da poesia cantada, falada, musicada, me falam a tudo. Me tocam corpo e alma. Que verdade não é uma metáfora disfarçada? Que metáfora não é uma verdade oprimida? Dar essa entrevista é conceber uma família de sílabas, imagina cantar”.
ALMÉRIO
Será preciso chegar cedo. Show de abertura com potência de atração da noite, o pernambucano Almério apresenta, pela segunda vez, "Desempena" - o show com o qual vem ganhando o Brasil (antes de dividir o Rock in Rio com Lineker e Johnny Hooker, corre capitais com o espetáculo). Como Elza, Almério é um desses artistas que surgem com a estatura de quem parece sempre ter existido. A teatralidade de sua voz sexualmente ambígua, timbre seguro, andrógino, metálico, se ampara numa poética rica em imagens de um pop sem fronteiras, contemporâneo. Palavra e música numa simbiose de ternura e subversão: relativamente desconhecidas, canções que também ganham aderência imediata pela sinceridade com que, nelas, impõem inquietações. Chamá-lo de “show de abertura” seria apenas reducionista. A noite reserva espaço para dois grandes espetáculos.
Elza Soares no Baile Perfumado, com Almério e DJ Lala K. 22h. R$60 (meia-entrada), R$70 (entrada social + 1kg de alimento). F.: 3033-4747.