Que mais seria, um álbum, do que uma compilação de retratos musicais, de histórias vivenciadas física, geográfica ou metafisicamente: não é, afinal, um registro? Ouvir cada canção é como revelar um filme fotográfico, ou mesmo cinematográfico; desvelar a memória do autor e as percepções do ouvinte e observador. Dois distintos discos-contos serão ‘renarrados’ ao vivo hoje, na 12ª edição do Festival No Ar Coquetel Molotov: os álbuns Ava Patrya Yndia Yracema, de Ava Rocha, e Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa, do rapper Emicida.
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A história que Ava Rocha conta hoje no palco Velvet da Coudelaria Souza Leão não é a mesma que foi inventada no estúdio, quando Ava Patrya Yndia Yracema (completamente homônimo dos quatro primeiros nomes da cantora, filha dos cineastas Paula Gaitán e Glauber Rocha) foi gravado. “Eu nem tinha a intenção de reproduzir os arranjos, as nuances. Continua a existir a presença criativa dos músicos, as novas ideias, diversas: vários universos”, diz a autora, comparando a obra com um filme.
Para dar continuidade a história que se conta em APYY, músicos da cena experimental do Rio de Janeiro foram convidados. “Os convidei para formar a banda do show e transcriarem os arranjos trazendo também a criatividade e pessoalidade de cada um desses músicos, que são pessoas com as quais eu tinha me inspirado muito.”
A experimentação sonora – colocada repetidamente, em entrevista ao JC, pela cantora como “transcriação” – própria do disco, ora arestoso, ora macio, permanece no show; cocriada agora com os músicos Eduardo Manso (guitarra e synth), Felipe Zenícola (baixo), Marcos Campello (guitarra), Marcelo Calado (bateria), Tomas Harres (bateria, MPC e percussão). “Quem escutou o disco e gostou; pode ter certeza que vai adorar o show, mas não espere o disco na íntegra. Já temos novas músicas. Tanto releituras quanto canções de outros compositores”, adianta Ava, dando como exemplo a música Spring (de Luís Augusto), que não entrou no disco, mas está no repertório que será tocado hoje no bairro da Várzea, na Zona Oeste do Recife, cidade que a artista cultiva muitos amigos de todas as artes: os cineastas Petrônio de Lorena e Leonardo Sette; os artistas visuais Lourival Cuquinha e Paulinho do Amparo; o músico Grilowsky.
Entre hibridismos, Ava apresenta o sentido de unidade no novo trabalho (sucessor de Diurna, 2011): “Cada um de nós temos muitas coisas e carregamos muitas memórias. Nossas raízes, nossos delírios, nossa própria vida. Está tudo implícito. Vejo a possibilidade de uma Pangeia, de um terreiro de experimentação – canção e noise.”
Nesta Pangeia, América e África dormiram “de conchinha”, o que talvez reflita na intimidade cultural do Brasil com os ancestrais do outro lado do Oceano Atlântico. As pessoas e as ruas de Angola e Cabo Verde, dois países desse segundo continente citado, aliás, foram o mote para o processo criativo do rapper Emicida, em Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa (2015), gravado entre estúdios africanos e brasileiros, com produção de Xuxa Levy.
“Eu estava mergulhando e estudando muito a música de lá (da África)”, conta Emicida. “Fui passear em Madagáscar no fim do ano e isso me instigou a conhecer mais coisas. Queria muito ir para Moçambique. Estava pesquisando idiomas além do português e tudo isso foi um norte. Rolou essa parada do edital (Natura Musical) que acabou possibilitando.”
“Quando as pessoas observarem o que foi filmado em Cabo Verde e Angola, vão ver as semelhanças”, compara. Prova disso são as imagens do videoclipe de Mufete (mesmo nome de um prato típico de Angola), que reúne em imagens e discurso os lugares por onde o músico passou. Já o clipe de Boa Esperança é mais amparado no contexto social brasileiro, uma espécie de luta de classes contemporânea: “Eu acredito que aquilo é uma sugestão. E assusta como aquilo é tão presente na realidade brasileira.” No último show, além de cantar rap, Emicida tocava MPC e bateria; hoje, também no palco Velvet, os pernambucanos poderão “experimentar o impacto que o novo espetáculo vai dar na plateia.”