"Rapaz, Mundo Livre S/A me lembra a Guerra Fria, Agente 86. Mundo Lire S/A sou eu chegando do Sertão ao cais do Recife, aos bares da Praça do Sebo, ali atrás dos Correios, velho Zeroquatro. Porra, e aquele chope fuleiro, zero. A Kombi simples quebrando antes de chegar ao destino. Lembra velho Zeeero! Parece que foi ontem. Pois ontem é um lugar é um lugar que praticamente não existe, que foda!, que lindo! Viva a porrada do presente! Salve a ideia futurista! Mundo Livre vamo nessa!"
Com este discurso exclamativo e saudosista-futurista, o cronista-mor do Recife contemporâneo Xico Sá apresenta Mundo Livre S/A, na abertura do Mangue Bit, primeiro DVD gravado ao vivo, pela banda dos mangueboys de Candeias, no Sesc Belenzinho, em abril de 2015. Desculpe a redundância: o álbum é um passeio pelo melhor do Mundo Livre. O lançamento do DVD ocorre no domingo (3/4), nos jardins do Barchef, em Casa Forte.
A seleção de 16 faixais começa com um dos seus primeiros e maiores hits, Melô das Musas, com o público cantando junto. De cara, vê que a banda está azeitada, com o baixão de Jr. Areia se destacando na marcação e o naipe de metais sublinhando a linha melódica do refrão.
Com Loló Luiza, Fred Zeroquatro entra na cadência do samba esquema noite do seu som jorgebenjorgiano reprocessado para as praias do litoral pernambucano. A mais nova canção da Mundo Livre, apresentada no ano passado no Sesc Belenzinho, já nasce clássica. Zeroquatro canta meio tirando onda com o gago apaixonado de Noel Rosa, gaguejando partes da letra.
Uma das mais sensíveis canções de Zeroquatro, bossanovista Meu Esquema (Por Pouco), que mistura paixão amorosa (pela sua amada, a bailarina Maria Eduarda) com a paixão pelo futebol (ele exalta o ex-tricolor Rivaldo, mesmo sendo Sport doente) não poderia faltar neste repertório. Sucesso que embalou até programa de TV de Luana Piovana, é um convite para dançar junto - principalmente numa ilha da fantasia.
Ela é Indie (trocadilho com ela é índia, selvagem?) é um sambão que ele pinçou de Novas Lendas da Etnia Toshi Babaa. A música fala de uma garota de suavidade fulminante que trocou um o cantor por um "baixista"Olinda Style". Aqui, Zeroquatro se dá direito a umas levadas viajantes típicas da MLSA. A sensualidade benjorgiana aparece forte em Mexe Mexe (Por Pouco), no qual ele relembra a influência de Tábua de Esmeraldas. Neste novo arranjo, destaque para os teclados de Leo D.Free Worl
Ouvindo as faixas em seguência, nota-se que Fred Zeroquatro privilegiou as músicas com temática feminina na seleção. Inocência (O Outro Mundo de Manuela Rosário) fala por sua vez de um aprendiz Don Juan e o que espera ele ao se apaixonar por uma jovem, tendo que deixar de lado a azaração, a sacanagem, a vida boêmia: "o universo e os elementos continuam conspirando a seu favor E você continua reinando, reinando enquanto dorme!", canta irônico.
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A música mais longa do disco é Pastilhas Coloridas (Guentando a Ôia), uma viagem psicodélica-futurista, que remete aos tempos de moleque na Ilha Grande (Candeias), vivendo um tempo de descobertas, peladas, vendo surgir a urbanização de um bairro distante, enquanto os pais viviam a pressão das crises econômicas: "Os ratos engordando dia-a-dia/ Com os nossos sonhos podres/ E a gente inventando regras/ Para sobreviver na Ilha Grande/ Pois o continente parecia muito longe/ E talvez não houvesse lugar para nós/ No mundo livre". A música tem um refrão apologético que reflete bem aqueles anos: "Amigos nas farmácias/ E quando a erva faltava/ Qualquer droga era boa".
Chegando no meio do disco, o ska samba rock que fez gravado por Chico Science & Nação Zumbi - Computadores Fazem Arte (Da Lama ao Caos) e regravada pela Mundo Livre S/A em Guentando a Ôia. Minimalista, direta como nunca, irônica, visionária, resume o pensamento punk de Fred Zeroquatro: "Computadores fazem arte/ Artistas fazem dinheiro//Pesquisadores avançam/ Artistas pegam carona/ Cientistas inventam o novo/ Artistas levam a fama".
Com o público conquistado, Fred tira do baú uma das primeiras composições suas: Bolo de Ameixa, um rock com guitarras pesadas e levada de samba-reggae. Aqui está toda a malandragem juvenil da patota do bar de Sérgio Praia e do Bar do Caranguejo, em Candeias. O samba "de breque" Free World (Guentando a Ôia) servia como um cartão de visita dos show na Mundo Livre S/A, citando os integrantes da banda e o trajeto que eles faziam de ônibus. É uma das músicas onde o teclado - antes pilotado por Bacteria e atualmente nas mãos habilidozas de Leo D - mais sobressaem. Empolga a galera sempre.
Super Homem Plus (Por Pouco) é um samba político, de denúncia da violência, em tempos que a bala perdida estava virando rotina na vida nacional: "Algo me salvou, ai!/ Olha o sangueiro irmão./ Segure aqui, eu vou cair./ É bom rezar todo dia, fera,/ pra gente nunca virar alvo de uma missão humanitária aliada". Destaque na música para a quebrada da percussão e a levada acelarada do samba, que em momentos remetem (ironia) ao "onde está Dalila", clássico do axé.
O cavaquinho elétrico de Fred Zeroquatro dá a senha para O Mistério do Samba (mais uma de Por Pouco), no qual revisita Tom Zé, de estudando o samba, aqui em versão esquema noise. O naipe de metais leva a música para uma pegada mais de gafieira, uma sonoridade mais caribenha e paraense. A Expressão Exata (Carnaval na Obra) é daqueles sambas mais experimentais da Mundo Livre, com andamentos quebrados, mas com um "paparapapapá" que gruda como chiclete. Mais uma aqui se coloca o macho em crise diante da fêmea: Por que fazer sofre a minha/ pobre próstata inerte?" canta, para depos emendar: "Eu te juro meu bem: Eu prefiro você a qualquer vira-lata".
O disco vai chegando a reta final em clima carnavalesco, no frevo sacana O Velho James Browse Já Dizia (Novas Lendas...), cheio de trocadilhos com os termos da linguagem da informática (Anete = a net; a vida é pra compartilhar e gozar, Meu conteúdo quente vai queimar seu disco virgem) e por aí vai.
Seu Suor é o Melhor de Você (Guentando a Ôia) mantém o clima sacana que permeia algumas letras de Zeroquatro. Ao vivo, foi gravada numa versão acelerada, para a galera pular sem parar, até perder o fôlego. Ela entrou quase que um bis. Fechando com chave de ouro, a homenagem a Kid Morengueira (Moreira da Silva), o samba já antológico e definidor do estilo da MLSA: Livre Iniciativa, com seu refrão "Samba Esquema Noise", e as distorções da guitarra como assinatura, a letra contundente: "uma arma fumegante na mão/ e uma ideia na cabeça".
Mangue Bit é o melhor do lado pop de Fred Zeroquatro, um disco para quebrar barreiras sinistras do embotamento cultural. Um disco para ser ouvido, cantado compartilhado.