Um dos episódios cruciais da música popular do século 20, a turnê de Bob Dylan com The Hawks (depois rebatizado de The Band) em 1966, está espalhada por centenas de álbuns bootlegs, de qualidade sonora variada, em vinis hoje raros e CDs. Porém, em volumes dispersos, a maiorias descuidados, muitos se repetindo com títulos diferentes.
Ciente da importância de Bob Dylan, não apenas para a música em si, como para a cultura americana em geral (como o Prêmio Nobel de Literatura agora ratificou), a Sony Music/Legacy vem lançando paulatinamente, mas sempre em volumosas caixas, o material de arquivo do cantor, na Bootleg Series. A série foi iniciada em 1991 já conta com 11 volumes, 24 discos, e mais de três centenas de canções, boa parte inédita. Mais uma caixa está pronta para ser detonada.
Dia 21 de novembro, a turnê completa de 1966, ou pelo menos tudo o que foi oficialmente registrado dela, aterrissa num maciço caixote com 36 discos, intitulada Bob Dylan The 1966 Living Recordings. Nesta época "turnê mundial" compreendia basicamente Estados Unidos, Europa e Austrália, com eventuais escalas no Japão, o que não foi o caso com Dylan e The Hawks 50 anos atrás. O motivo de tantos discos, e exatamente dessa turnê, deve-se a sua importância.
O ano de 66 foi um divisor de águas na música popular que, por sua vez, refletia as transformações que se processavam em alta velocidade na sociedade. Dylan foi uma espécie de arauto e antena deste novo tempos que se delineavam. No ano anterior, ele se recusou abruptamente a ser líder de sua geração ou de qualquer coisa. Desacatou os conservadores de esquerda que dominavam o movimento folk dos anos 60, ao tocar com uma banda de rock no Newport Folk Festival.
Um gesto motivado pelas vaias, na noite anterior, dirigidas a Paul Butterfield Blues Band, que também tocou com guitarras no festival, cujo público e atrações eram radicalmente puristas. "Não se pode assoviar na igreja, assim como não se pode tocar com guitarras num festival folk", definiu Theodore Bikel, ator, músico e um dos criadores do festival de Newport.
JUDAS
Em 1965, Bob Dylan se aqueceu para a turnê do ano seguinte, mais polêmica e controversa do que a dos punk Sex Pistols dez anos mais tarde. A plateia dos Pistols ia aos shows da banda sabendo o que lhes esperava. A de Dylan esperava que ele tivesse recuperado o bom senso e voltado a ser o meteorologista apontando para onde o vento soprava.
Ainda o viam como o trovador que na turnê de 1965, com violão e gaita, tocou tudo o que o público esperava ouvir. Só não sabiam que seria a última com aquele formato. Em 1966, depois alguns números acústicos, Dylan e The Hawks caíam no rock and roll. "Traidor", "Judas", eram atirados da plateia, proferidos por pessoas que o consideravam vendido à música comercial. O que Dylan tocava não era exatamente comercial, mas isto só seria entendido anos mais tarde.
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No autobográfico Chronicles Volume 1, ele comenta outras guinadas de 180 graus tão drásticas quanto a sua: Miles Davis, com o elétrico e barulhento Bitches Brew, e a turma da bossa nova no Brasil (cita João Gilberto, Roberto Menescal e Carlos Lyra). Quanto a própria subversão ele resume o método que utilizou: "O que fiz para me liberar foi pegar modulações simples de folk e colocar imagens e atitudes novas, usar fraseados que capturavam a atenção e metáforas combinadas com um novo conjunto de costumes que evoluíam para algo diferente, que não fora ouvido antes".
O impacto, porém foi muito além do que provavelmente ele mesmo previra. A reviravolta que provocou quando apareceu no palco do Newport Folk Festival, meio século atrás, de jaqueta de couro, com The Hawks, as guitarras mal adaptadas a amplificadores apropriados a instrumentos acústicos, as vaias da plateia, traçaram uma linha que dividia passado de presente.
A caixa traz todos os shows que se imagina foram registrados na turnê, na Europa e Austrália, com a maioria do material saída dos arquivos da Sony Music. Dois dos shows foram cedido por particulares. Claro que é uma caixa para se degustar lentamente. Um concerto de Dylan nunca é igual a outro, muitas vezes ele descobre um achado para determinada letra, e emprega ali mesmo durante a performance. Raramente repete o mesmo repertório (naquele tempo os concertos eram curtos duravam em media 40 minutos, com dez canções no máximo.