AGRICULTURA

Entenda por que a França produz vinhos e queijos tão bons

Investimentos em qualidade, cultura da alimentação saudável e muitos subsídios garantem a excelência dos produtos franceses

SAULO MOREIRA
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SAULO MOREIRA
Publicado em 21/08/2016 às 8:00
Foto: Saulo Moreira/Especial JC
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Egoístas. Para um estrangeiro que tenta se aprofundar nos processos produtivos da agropecuária francesa, é quase inevitável não classificar aquela política de individualista, fechada, antiglobal. Quinta maior economia do mundo e segunda da Europa (atrás da Alemanha), a França tem um PIB per capita de US$ 44 mil, mais que o triplo do valor registrado no Brasil, US$ 13 mil. Ainda assim, em matéria de produção de alimentos, o país muitas vezes dá as costas para o comércio exterior, um reconhecido instrumento de distribuição da renda global. O governo francês subsidia fortemente os produtores que, muito organizados politicamente, não têm o menor problema em dizer que abrem mão da rentabilidade em nome da qualidade e da manutenção de empregos e preços em patamares que lhes interessam. Egoístas? Em uma semana na França, conversando com pequenos agricultores em mais de dez cidades da região da Borgonha e Franche-Comté, percebe-se que não há egoísmo. Só pragmatismo. Da parte dos agricultores, há, sim, uma bem articulada ação de sobrevivência às grandes corporações nacionais e internacionais. Na esfera governamental, executa-se um projeto eficiente para continuar sendo a maior potência agrícola da Europa ao mesmo tempo em que evita o êxodo do campo para as grandes cidades, onde problemas sociais e geopolíticos são cada vez maiores.

O mais interessante é que esta união dos pequenos é exatamente o que garante à França o título de país com os melhores vinhos, os melhores queijos, a melhor mostarda. A França também se destaca em carnes, leite, cereais e por aí vai. O grosso da produção vem de fazendas familiares estimuladas a participar dos programas oficiais de qualidade e, assim, receberem os famosos selos como o de Denominação de Origem Controlada (DOC), o mais cobiçado e poderoso.

Mas qual a origem desta busca pela excelência? Desde 2003, após muita pressão dos países em desenvolvimento (como o Brasil) na Organização Mundial de Comércio (OMC), a União Europeia mudou seu modelo no campo. Embora siga protecionista, foca mais qualidade e meio ambiente do que o cumprimento de metas de produção. A procura pelos selos, então, aumentou. 

“O que define o produto é o método de produção e a localização. Não é o tamanho da propriedade", diz Jean-Luc Dairien, diretor do Instituto Nacional de Origem e Qualidade (Inao, na sigla em francês). O Inao é um órgão público ligado ao Ministério da Agricultura. Com um orçamento anual de 23 milhões de euros, tem a missão de orientar os agricultores sobre os padrões necessários para se obter a certificação.

SELOS

No total, são cinco selos. Após receber o reconhecimento oficial, o produtor ganha mais credibilidade, poder de negociação e marketing, claro. Mais ainda: pode lutar para estender sua certificação à União Europeia. O produto fica muito mais competitivo. “Nenhum outro país pode usar o nome vinho de Bordeaux. Nós nos protegemos contra cópias, usurpação e ataques”, exemplifica Dairien, citando a região que rivaliza com a Borgonha em termos de qualidade de vinhos.

A França tem atualmente cerca de 500 mil unidades de produção dos mais variados produtos agropecuários. Vinte e cinco por cento delas têm o selo de certificação para pelo menos um produto. Juntas, somente as propriedades que contam com alguma certificação de qualidade faturam 23 bilhões de euros por ano. Se considerarmos exclusivamente aqueles que têm o selo garantindo que o produto é orgânico (uma obsessão na França), a receita geral sobe para quase 30 bilhões de euros.

Para atingir cifras tão relevantes, o processo de certificação tem de ser bastante rigoroso. Credibilidade é tudo. Tomemos como exemplo o vinho, um símbolo do país. Antes de concederem o carimbo de qualidade ao produto, técnicos da Inao vão à propriedade, verificam uvas, cepas, percentual de cada cepa para casos de misturas (assemblage), condições de plantio, distância de um parreira para outra, a poda do vinhedo, o tipo de colheita, se é mecanizada, se é a mão, técnicas de envelhecimento. Até os momentos que o sol bate mais intensamente no parreiral são levados em consideração.

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Vista de Dijon, na Borgonha. Cidade oferece beleza e boa estrutura. Além da famosa mostarda, claro - Foto: Saulo Moreira/Especial JC
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Chamados de “Bio”, orgânicos são uma verdadeira obsessão do consumidor francês - Foto: Saulo Moreira/Especial JC
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Feira de Aligre, uma das mais tradicionais de Paris. Franceses e turistas encontram muita qualidade - Foto: Saulo Moreira/Especial JC
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Feira de Aligre oferece é famosa por oferecer produtos frescos, orgânicos e exóticos - Foto: Saulo Moreira/Especial JC
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Além dos produtos, o local se destaca por ser um centro de convergência de imigrantes - Foto: Saulo Moreira/Especial JC
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Do lado de dentro da feira está o Mercado de Aligre, que funciona todos os dias (menos às segundas) - Foto: Saulo Moreira/Especial JC
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Queijos são um símbolo da França. Neste “box”, há 200 tipos diferentes. - Foto: Saulo Moreira/Especial JC
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Na feira, diversos tipos de embutidos. Mas se há crueldade no abate de animais, há boicote - Foto: Saulo Moreira/Especial JC
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Queijo mais caro no mercado é o beufort d’alpage, cujo o quilo custa cerca de R$ 130 - Foto: Saulo Moreira/Especial JC
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Como em qualquer outro mercado do mundo, também há muitas variedades de produtos do mar em Aligre. - Foto: Saulo Moreira/Especial JC
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O contraste entre o azul-turquesa do céu e o verde das pastagens: imperdível - Foto: Saulo Moreira/Especial JC
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Estande de vendas da tradicional vinícola da castelo da família Michel Picard, com 50 rótulos - Foto: Saulo Moreira/Especial JC
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Enquanto a Região de Bordeaux é famosa pelo cabernet, pinot noir é a cara da Borgonha - Foto: Saulo Moreira/Especial JC
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Queijo Comté, o preferido dos franceses. Para os produtores, tratamento tem que ser como o do vinho - Foto: Saulo Moreira/Especial JC
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A famosa mostarda de Dijon, um dos símbolos da Borgonha. Eles dizem que há um pote em cada geladeira - Foto: Saulo Moreira/Especial JC
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Plantação de mostarda. Os campos são geralmente de pequenos produtores - Foto: Saulo Moreira/Especial JC
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Gado charolês, o mais típico da Borgonha. O - Foto: Saulo Moreira/Especial JC

Anualmente, o governo francês concede subsídios da ordem de 10 bilhões de euros a seus produtores. Países emergente como o Brasil, exportador de commodities agrícolas (trigo e soja, principalmente), costumam criticar este modelo, chamado na União Europeia de Política Agrária Comum (PAC). A lógica da crítica é simples: como pode, num mundo globalizado, nosso produto concorrer com o de outro país que recebe dinheiro vivo do governo? Para esta questão, geralmente a mais delicada nos acordos de livre comércio, o diretor de Desenvolvimento Econômico do Ministério da Agricultura, Patrice de Laurens, já tem resposta pronta. “Nossa política agrícola é das mais antigas do mundo. E seus princípios são a segurança alimentar, normas de qualidade e segurança sanitária.”

Sobre um possível acordo entre Mercosul e União Europeia, Laurens também mantém os argumentos na ponta da língua. Perspicaz, me observa fazendo a pergunta sobre protecionismo, espera pacientemente a conclusão e, calmamente, dá seu recado ao brasileiro. “Existem questões sensíveis de ambos os lados. Da mesma forma que existem os subsídios na Europa, existe o risco de desmatamento das florestas, não é mesmo?" Percebendo a complexidade do tema e sabendo que o Brasil é acusado de derrubar matas nativas para produzir soja e outras commodities, preferi não polemizar.

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