SAÚDE

Manual do Ministério da Saúde nega que aborto seja legal, institui prazo para ser feito e pede investigação contra mulheres

Audiência foi realizada na manhã desta terça-feira (28) para discutir o Manual para Prevenção, Avaliação e Conduta nos Casos de Abortamento

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Katarina Moraes

Publicado em 28/06/2022 às 11:40 | Atualizado em 28/06/2022 às 13:24
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Foi realizada na manhã desta terça-feira (28) uma audiência pública promovida pelo Ministério da Saúde para discutir o Manual para Prevenção, Avaliação e Conduta nos Casos de Abortamento. O documento foi elaborado pelo governo Jair Bolsonaro (PL) para ser entregue a médicos que vão fazer o procedimento legal, mas contém distorções criticadas até mesmo por participantes ditos como “pró-vida” - ou seja, contra o aborto.

Na ocasião, foram comentados alguns pontos do documento, como a afirmação de que não há aborto legal, ainda que a legislação permita o procedimento em três situações no Brasil: quando não há outra forma de salvar a vida da mulher, quando a gravidez for comprovadamente resultado de estupro e quando o feto for anencéfalo - isto é: tem um cérebro subdesenvolvido e crânio incompleto.

“Gostaria de fazer uma orientação especial para uso de linguagem tecnicista, que afasta do conceito comum do que é crime. Quando a cartilha afirma que todo aborto é crime, vem em total dissonância à doutrina de direito penal. Quando há excludente de ilicitude, como é o caso, não há crime. Não se pode dizer que existe crime de aborto legal se o conceito de crime permite aquele procedimento”, defendeu a defensora pública federal Daniela Corrêa.

As duas primeiras condições estão previstas no artigo 128 do Código Penal brasileiro, legislação de 1940. Já a interrupção da gestação em casos de anencefalia passou a ser descriminalizada apenas em 2012, após entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF). A decisão consta na Arguição de Descumprimento de Preceito Federal (ADPF) número 54.

Políticos da ala conservadora, como a deputada federal Bia Kicis (PL) e a deputada estadual Janaína Paschoal (PRTB), inclusive, endossaram a constatação na reunião, transmitida ao vivo pela internet.

Antes mesmo da audiência, uma nota de repúdio assinada por redes médicas do País apontou 14 distorções no manual. Reportagem da Folha mostrou que uma delas está no trecho que prevê investigação a mulheres que estejam aptas a realizar a interrupção da gravidez: "todo aborto é um crime, mas quando comprovadas as situações de excludente de ilicitude após investigação policial, ele deixa de ser punido".

"O que o Ministério da Saúde quer dizer com isso? Que todos os abortos legais serão investigados pela polícia? Quem será investigado no caso de um aborto terapêutico? [para salvar a vida ou a saúde de uma mulher grávida] O médico? A mulher? E nos casos de gravidez decorrente de estupro?", questionaram as entidades, que consideram o ato uma “tortura psíquica do Estado” contra mulheres que, em tese, já estariam fragilizadas.

"Ao contrário do que diz o manual, o Código Penal prevê que não há punição - e nem investigação - para essas hipóteses legais, tanto para a mulher vítima de violência, quanto para equipe médica que realiza os procedimentos de aborto. Se não existe conduta criminosa, ninguém estará sujeito a investigação. As vítimas, inclusive, têm a presunção de veracidade de suas palavras para a realização do procedimento", pontuou o movimento Me Too, que também repudiou o manual.

O texto ainda faz com que profissionais violem o sigilo profissional, que configura crime previsto no artigo 154 do Código Penal, a partir da notificação dos casos de estupro que levem ao aborto. Há portarias vigentes que só permitem a notificação com o consentimento da vítima.

Outro ponto que alteraria a conduta atual é a orientação para que o procedimento não seja feito após as 21 semanas e 6 dias de gestação, argumentando que, “nesses casos, cuja interface do abortamento toca a da prematuridade e, portanto, alcança o limite da viabilidade fetal, a manutenção da gravidez com eventual doação do bebê após o nascimento é a conduta recomendada.” Atualmente, no entanto, a lei não impõe qualquer limite para que o aborto seja realizado.

"No sentido jurídico penal, o aborto pode acontecer a qualquer tempo antes do início do parto; ou seja, durante a vida intrauterina. Somente há crime nos casos de abortamento se houver dolo. Aqui, faço uma pausa: se o aborto legal fosse de pleno conhecimento da sociedade, muito mais facilmente as mulheres o buscariam no início da gravidez e não em casos como, quando infelizmente ocorre, onde mulheres mais vulneráveis, portanto mais intimidadas, tendem a perceber a gravidez e a possibilidade do aborto legal muito tarde", afirmou a representante da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, Lia Machado.

Casos de aborto e entrega voluntária após estupros

A audiência foi realizada após dois casos de estupro terem ganhado repercussão nacional nas últimas semanas. O primeiro, o de uma menina de 11 anos que foi induzida a desistir do aborto por uma juíza de Santa Catarina. O último, o da atriz Klara Castanho, que revelou ter feito uma entrega voluntária legal do bebê, gerado por meio de violência sexual.

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