Jornais gaúchos se desdobram para manter operações
Zero Hora e Correio do Povo, os dois jornais de Porto Alegre mais atingidos, tiveram seus parques gráficos completamente alagados
Por Helio Gama Neto, especial para o JC
Habituados a cobrir tragédias, jornais do Rio Grande do Sul também se transformaram em notícia ao sofrer os efeitos da maior catástrofe da história do Estado e, ao mesmo tempo, se desdobrar para cumprir sua missão de levar informação às populações atingidas.
Em comum, Zero Hora e Correio do Povo, os dois jornais de Porto Alegre mais atingidos, tiveram seus parques gráficos completamente alagados e abriram seus paywalls, liberando o acesso do público a um conteúdo jornalístico mais urgente e relevante do que nunca. Todos os jornais que seguem imprimindo, ainda que parcialmente, suas edições enfrentam enormes dificuldades de distribuição dos exemplares em razão da obstrução ou destruição de mais de 150 pontos nas rodovias gaúchas.
Entre os jornais que integram a Associação Nacional de Jornais (ANJ) em Porto Alegre, o primeiro a ser atingido foi o Correio do Povo, instalado no histórico edifício Hudson, no centro da Capital, a cerca de 300 metros do Lago Guaíba. O prédio foi evacuado ainda no fim de semana passado, e as equipes do jornal passaram a atuar de forma remota, como ocorreu na pandemia, produzindo edições digitais abertas aos leitores. Os programas da Rádio Guaíba, localizada no mesmo prédio, passaram a ser transmitidos do prédio da TV Record, no Morro Santa Tereza.
Em uma demonstração de apoio e solidariedade entre os jornais, o Grupo Sinos, com sede em Novo Hamburgo, na Grande Porto Alegre, que não teve seu parque gráfico inundado, passou a imprimir desde 7 de maio milhares de exemplares de Zero Hora e do Pioneiro, ambos do Grupo RBS. “Por meio dessa parceria maravilhosa com o Grupo Sinos, estamos conseguindo distribuir os dois jornais parcialmente em locais onde as estradas não estão interrompidas”, diz Marta Gleich, diretora-executiva de Jornalismo e Esportes da RBS.
“A aliança é fruto de uma antiga relação entre os fundadores das duas empresas, Mário Gusmão e Maurício Sirotsky Sobrinho, ressalta Fernando Gusmão, CEO do Grupo Sinos. “Nós tínhamos papel suficiente, e é claro que a gente ajuda. Tenho certeza que a recíproca seria a mesma. Vamos atender até onde for possível ao Grupo RBS”, afirma o executivo.
“Para nós foi muito difícil não termos conseguido imprimir a edição do dia 6 de maio (uma segunda-feira). Foi a primeira vez nos 60 anos do jornal que ZH não saiu com sua edição impressa”, lamenta o publisher e membro do Conselho da RBS, Nelson Sirotsky, ao lembrar que no dia anterior, domingo, ficou claro que era impossível acessar o maquinário para imprimir os jornais. Nelson Sirotsky agradeceu profundamente o apoio da família Gusmão, proprietária do Grupo Sinos, neste momento de crise.
RBS
Outro jornal do Grupo RBS, o Diário Gaúcho, de venda avulsa, está produzindo apenas edições digitais. “Como muitos jornais gaúchos também estão enfrentando em suas operações as consequências das enchentes, as parcerias entre jornais e o apoio mútuo reforçam a insubstituível missão de levar informação correta à população e combater as fake news”, diz o presidente-executivo da ANJ, o jornalista Marcelo Rech.
Além de enviar manifestações de solidariedade e noticiar a magnitude da catástrofe, jornais membros da ANJ de todo o Brasil têm oferecido apoio aos colegas do Rio Grande do Sul para manter suas operações. “O apoio dos demais associados, como no caso do Grupo Sinos para imprimir a Zero Hora e o Pioneiro, só reforça esse espírito inquebrantável dos jornais”, diz o presidente-executivo da ANJ, que vive em Porto Alegre e acompanha de perto o drama dos jornais e dos gaúchos.
Radinho de pilha
“A crise vivida pelo país durante a pandemia nos ensinou a atuar de forma eficaz mesmo em um ambiente que lembra a guerra, em qualquer lugar e com qualquer operação: TV, rádio, jornal e digital”, observa Marta Gleich, diretora de Jornalismo da RBS. “Nosso foco prioritário agora é a prestação de serviço”, acrescenta. Segundo a jornalista, todos os comunicadores do grupo, das áreas de jornalismo e de entretenimento, estão envolvidos na cobertura dos estragos causados pelas chuvas, desde 30 de abril. “Estamos indo aos locais atingidos de carro, helicóptero, de barco e até a pé”, conta a jornalista.
Além disso, o conteúdo digital sobre as inundações e as edições em flip (formato editado tal qual o impresso, mas disponível apenas online) dos três jornais do grupo – Zero Hora (ZH), Pioneiro, com sede em Caxias do Sul, na Serra, e o popular Diário Gaúcho – estão liberados para não-assinantes enquanto durar a crise ambiental.
A certeza de que o trabalho é bem feito vem das ruas mesmo, destaca Gleich. “O mais comovente são os retornos que a gente recebe de agradecimento pelas informações passadas para as pessoas sobreviverem a essa catástrofe”, diz. Segundo ela, o jornalismo da RBS tem chegado à audiência mesmo com vias interrompidas e áreas sem energia e internet. “Há casos de pessoas acompanhando nosso trabalho até mesmo por meio do radinho de pilha”, enfatiza.
Gráficas inundadas
A operação para que as notícias cheguem até as pessoas em um cenário de guerra é, de fato, complexa e cheia de desafios. As águas do Lago Guaíba subiram mais de um metro nos parques gráficos de ZH e do Diário Gaúcho, da RBS, localizado perto do Aeroporto Salgado Filho, e do centenário Correio do Povo, da Record, instalado na região conhecida como 4º Distrito, na Zona Norte da cidade.
Como já havia ocorrido no Correio do Povo, com a progressiva subida das águas, a equipe da RBS teve de sair do prédio no bairro Azenha (Centro-sul de Porto Alegre, a um quilômetro do Lago Guaíba) e se instalou na estrutura onde a empresa mantém as operações da RBS TV, no morro Santa Tereza, longe das águas.
A opção do Correio do Povo foi ficar, enquanto seu parque gráfico seguir inutilizado pelas águas, com as publicações no seu site e com a versão flip. “Além da impressão, a versão em papel exige uma logística de distribuição comprometida pela enorme dificuldade de circulação das pessoas”, observa o diretor de redação do jornal Correio do Povo, Telmo Flor. “Estamos comprometidos com o jornalismo e atentos às peculiaridades da inundação, que atinge a todos nós”, completa.
Utilidade pública
No árduo trabalho em ambiente tão inóspito, repórteres, fotógrafos e cinegrafistas têm enfrentado perigos e dificuldades enormes para se locomoverem, transformando as adversidades em conteúdo jornalístico de alta qualidade.
“Desde o início da catástrofe, na produção em tempo real, nossas equipes não medem esforços para levar a notícia ao nosso público, como é o caso de um repórter nosso que acompanhou um resgate por helicóptero”, diz Fernando Gusmão, do Grupo Sinos. Segundo ele, são cerca de 60 jornalistas atuando diretamente na cobertura da crise voltada para um público que reúne moradores de três cidades da Grande Porto Alegre – São Leopoldo, Novo Hamburgo e Canoas –, além de Gramado, na Serra gaúcha.
Todas essas regiões foram prejudicadas pelas inundações, sobretudo Canoas e São Leopoldo, e em tempos de normalidade contam com edições diárias impressas e específicas para cada município, os jornais NH, VS e Diário de Canoas (DC), além do semanário Jornal de Gramado.
Agora, diante da crise climática, o Grupo Sinos vem publicando diariamente uma compacta edição impressa e digital conjunta do ABC, título do jornal de fim de semana da empresa dirigido ao Vale do Rio dos Sinos. “Nos adequamos à logística imposta pela crise, com muita dificuldade de circulação em algumas áreas”, afirma Gusmão.
“Estamos em um regime de mutirão, de plantão permanente, com programação ampliada no rádio, e um reforço na publicação de conteúdos no digital, inclusive redes sociais”, diz o diretor de redação do Grupo Sinos, Igor Müller. “Isso tudo para justamente agilizar a nossa função de informação, uma pegada de utilidade pública, de urgência”, completa.
Faro jornalístico
No Correio do Povo, o experiente e premiado fotógrafo Ricardo Giusti e o jornalista Cristiano Abreu foram escalados, ainda no fim de abril, para reportar de Santa Maria, a cerca e 300 quilômetros de Porto Alegre, que receberia a comitiva do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
No trajeto foram documentando os estragos causados em várias cidades e tiveram de dormir no carro antes de fazer um enorme contorno para conseguir acessar Santa Maria, conforme conta o em detalhes o jornalista Felippe Aníbal, na revista piauí.
No retorno a Porto Alegre, viajando por mais dias do que o planejado, a equipe do Correio do Povo conseguiu chegar a Guaíba, na região metropolitana, conta Telmo Flor. Mas não foi possível ir adiante por causa das estradas interrompidas.
O faro jornalístico, porém, continuava aguçado. Ao saber que a situação de Eldorado do Sul, bem próximo a Guaíba, era dramática, Giusti pegou carona em um caminhão do Exército e conseguiu registrar o que, segundo ele, era uma cena típica de conflitos armados. “Aquela coisa de refugiados, que a gente vê na Europa”, diz ele em entrevista à piauí.
Apoio psicológico
Os profissionais de comunicação exercem com zelo a função de garantir o direito à informação, mas sofrem como qualquer outra pessoa diante de fatos tão trágicos como os registrados agora no Rio Grande do Sul. “Essa é uma cobertura muito difícil, muito dura, dolorosa, que exige muito de todos nós”, afirma Igor Müller, do Grupo Sinos.
Além disso, comunicadores que moram no Estado estão enfrentando o mesmo drama do restante dos gaúchos. Experimentam as dificuldades de locomoção e com a falta de luz e água. Muitos tiveram de sair de suas casas. Alguns perderam boa parte do seu patrimônio. “A gente está sentindo coisas muito parecidas com o que experimenta a população”, diz Müller.
“O pessoal da linha de frente retorna muito abalado, como em uma guerra”, volta a comparar Marta Gleich, do Grupo RBS. Por isso, a empresa mantém um time de psicólogos nas redações e em campo, ajudando a manter a saúde mental dos profissionais.
Desinformação
Novamente como nas guerras, a verdade também tem sido duramente desgastada durante a crise climática no Sul do país. Repetindo um fenômeno global, a mentira vem sendo espalhada nas redes sociais.
“Depois de alguns dias concentrados em informações mais urgentes, como a possibilidade de rompimento de diques, estamos agora nos dedicando a combater boatos que servem apenas para tumultuar o já complicado atendimento às vítimas”, afirma Müller.
Segundo Gleich, os veículos da RBS também têm feito um rigoroso processo de checagem de todo o material produzido por seus repórteres. Além disso, o grupo aumentou a quantidade de publicações e vinhetas que separam a verdade da mentira, com produção própria e com material da agência de checagens Lupa.
“No combate à desinformação, cresce a relevância, a essencialidade do jornalismo”, diz a jornalista, que ainda lembra: “as edições dos jornais são um documento histórico do que estamos enfrentando”.