O assassinato da jovem Maria Alice Seabra, 19 anos, em junho do ano passado, foi um crime brutal de feminicídio. Ou seja, a vítima foi morta pela condição de ser mulher. A delegada Gleide Ângelo, responsável pelo caso, colocou o feminicídio na lista de qualificadoras do crime, o que vai aumentar a pena do pedreiro Gildo da Silva Xavier, padrasto da garota e réu confesso, em caso de condenação. Essa prática, no entanto, ainda é pouco comum entre os operadores de direito. A caminho de completar dois anos, a Lei do Feminicídio continua desconhecida da sociedade. Apesar de ser considerada um avanço, a legislação enfrenta uma forte resistência cultural. Justamente por colocar o dedo na ferida e escancarar que o machismo mata.
A inclusão do feminicídio no indiciamento e julgamento de casos de assassinato de mulheres é prevista desde março de 2015, quando a lei foi sancionada pela então presidente, Dilma Rousseff. Ela altera o Código Penal, colocando o feminicídio como um tipo de homicídio qualificado e incluindo-o no rol dos crimes hediondos. Na prática, isso quer dizer que casos de violência doméstica e familiar ou menosprezo e discriminação contra a condição de mulher passam a ser vistos como agravantes do crime de assassinato. “Não é um crime novo que surgiu. É o crime de homicídio, com uma qualificadora, que aumenta suas penas, em razão de a vítima ser mulher”, explica a delegada Inalva Regina, à frente do Departamento de Polícia da Mulher da Secretaria de Defesa Social.
Ela reconhece que a aplicação da lei precisa ser ampliada tanto na esfera policial quanto judicial. “É uma dificuldade que reflete o machismo que existe na sociedade como um todo. Estamos fazendo capacitações dentro da polícia para aumentar o conhecimento da legislação e a sua efetividade”, afirma Inalva. Para Simone Ferreira, do SOS Corpo, há um desmantelamento da rede de assistência à mulher, o que fragiliza ainda mais a cobrança de aplicação da lei. “Vivemos um momento de instabilidade política e administrativa no País, que tem um reflexo brutal no combate à violência contra a mulher”, ressalta a educadora da ONG.
A juíza Marylúsia Feitosa, da 2ª Vara de Violência Doméstica contra a Mulher da Capital, aponta outro complicador: o fato de os crimes de homicídios contra mulheres não serem investigados e julgados em varas especializadas. No âmbito da polícia, cabe ao Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) a instauração e conclusão do inquérito. Já a realização dos julgamentos fica a cargo do Tribunal do Júri.
O número de casos de feminicídio em investigação no Recife é um exemplo de como a efetividade da lei ainda é baixa. Dos 41 assassinatos de mulheres registrados na capital, de janeiro a outubro deste ano, apenas sete foram qualificados como feminicídio. “Esse número pode aumentar durante a investigação dos crimes”, argumenta o gestor do DHPP na capital, o delegado José Cláudio Nogueira. Na avaliação da diretora-geral de Enfrentamento da Violência de Gênero da Secretaria da Mulher de Pernambuco, Bianca Rocha, a inclusão da motivação preliminar de feminicídio nos casos de assassinatos de mulheres não é uma prática comum nem na polícia nem no Ministério Público.
Por essa razão, a Secretaria da Mulher levou, este ano, para as reuniões do Pacto pela Vida a proposta de transferir para as delegacias e varas especializadas a responsabilidade de investigar e julgar crimes de assassinato contra as mulheres. “É uma discussão que ainda está no início. Mas que é extremamente importante para dar maior efetividade à lei”, defende Bianca Rocha.