Josué diz ter criado a fórmula da invisibilidade. “É só morar na rua que ninguém lhe vê, passam e fingem que você não existe.” A frase é direta. Objetiva. Dita por um senhor muito elegante, calça social, camisa de manga comprida, sapato fino, em nada lembra um sem-teto. Josué da Silva, 54 anos, faz questão de andar sempre arrumado. Voz firme, esclarecida, ele sabe. Quem mora na rua é alvo dos piores julgamentos. “Têm pessoas que olham para mim e me vêem como um bandido, um desocupado, um incômodo para a sociedade. Nunca como um ser humano.” E, por mais invisíveis que pareçam ser, não são poucos. Cada vez são mais. A população de rua do Recife aumenta a olhos vistos. Não há dado oficial recente. A última vez que a gestão municipal contou, em 2016, eram mil pessoas vivendo em praças, sob marquises, sem um teto. Mas basta circular pela cidade. Pelos bairros mais distantes do Centro. A combinação é perversa. Crise financeira, desemprego em alta e promessas que não saem do papel. Há anos, os moradores esperam por um abrigo noturno, por um restaurante comunitário, por banheiros públicos e por uma rede com melhor atendimento. Vivem de esperar.
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Enquanto esperam, se viram como podem. Procuram lugares onde se sintam menos expostos, um pouco mais seguros, se é que é possível falar em segurança diante de noites insones, com frio, chuva e, não raro, nem um colchão para deitar. A tentativa de buscar mais proteção faz com que muitos desses moradores procurem pernoitar em locais mais afastados dos tradicionais pontos do Centro, como a Rua do Imperador e a Praça da Independência. O crescimento da população de rua é expressivo em bairros como Madalena, Espinheiro, Torre e Afogados, nas Zonas Norte e Oeste da cidade.
Na última quarta-feira, a reportagem percorreu vários pontos que, nos últimos anos, se transformaram em local de abrigo para os que vivem na rua. “É um aumento significativo, em lugares que a gente não via e passamos a visitar. Concentrávamos nossas ações nas áreas de Santo Antônio e Boa Vista. Mas a movimentação nos bairros tem sido cada vez maior. E, por isso, estamos ampliando o atendimento para essas áreas também”, diz o Frei Marcos Carvalho, da Pastoral do Povo da Rua, entidade ligada à Igreja Católica.
Justamente por saberem que estão longe do radar das organizações religiosas que, tradicionalmente, prestam assistência a esse público muitos moradores têm dificuldade até para conseguir uma única refeição. “Não vou negar para a senhora. Não comemos nada hoje. Aqui é mais difícil de passar alguém dando sopa ou algum tipo de ajuda”, diz Marcos Pereira dos Santos, 35, que fez da calçada da Avenida Boa Viagem, na Zona Sul do Recife, o seu local de morada. De dia, ele e a esposa, Natalícia Martins, 42, tentam conseguir um trocado lavando carros. À noite, dividem o colchão e o sono leve, agarrados à mochila e às duas ou três sacolas em que carregam tudo o que possuem. Passavam das 22h quando o casal, com fome, procurava enganar a barriga vazia em mais uma noite mal dormida.
O recrudescimento da população de rua só reforçou a urgência de uma luta antiga. Em maio de 2016, uma campanha na internet conseguiu coletar 7.700 assinaturas para cobrar da Prefeitura do Recife a implantação de um abrigo noturno voltado à população de rua. Apesar da pressão e de audiências públicas realizadas em torno do problema, nada aconteceu. “Não foi só o abrigo que não virou realidade. Várias ações previstas no Plano Municipal de Atenção Integrada à População de Rua não saíram do papel. Terminou se constituindo uma carta de intenções, mas sem resultado prático, para quem está na ponta, na rua”, diz Igor Sacha, da ONG Seja a Mudança, uma das vozes mais atuantes na campanha pela criação do abrigo há três anos.
RODÍZIO PARA MATAR A FOME
Não são poucas as necessidades. Os dois centros POPs que prestam atendimento direto aos moradores de rua, com três refeições e higiene pessoal, só conseguem atender, por dia, 30 pessoas. A incapacidade de dar conta da demanda faz com que exista um rodízio no serviço. “Eu só vou lá dias de terça e quinta. Porque não dá para receber todo mundo. Quando a gente vai, é bem atendido. Mas a fome não escolhe dia de semana”, diz José Alves da Silva, 54. Há cerca de 15 dias, ele e a esposa foram acolhidos por Josué, o senhor muito educado que, há oito meses, montou seu canto numa calçada da Avenida Visconde de Suassuna, na Boa Vista. Os três preferem ficar longe das confusões e disputas que ocorrem nos pontos mais tradicionais do Centro.
Com a chegada do casal, Josué improvisou uma parede de papelão e fez seu quarto. Muito organizado, pendura as poucas peças de roupa no cabide, só joga as pontas de cigarro no cinzeiro feito de material reciclado e diz que as pessoas até o tratam bem no sinal, até descobrirem que ele é sem teto. “Leio minhas poesias nos cruzamentos. Alguns baixam o vidro, puxam assunto e aí vem a fatídica pergunta: ‘O senhor mora onde?’ Quando respondo, já abreviam e encerram a conversa.” De vez em quando, Josué até brinca: “Eu moro na Rua Visconde de Suassuna. Edifício Nobre. Só que do lado de fora. Na marquise.” Ele e centenas de tantos outros.