A dor escapa da dimensão individual. Conta-se em dezenas: 23 mortes só em 2019. Já chegaram a inacreditáveis 50 em um dos anos mais trágicos, o de 1996. Faz décadas, as barreiras, encharcadas pela chuva concentrada, sentenciam à morte. Mas não desmoronam sozinhas. Cada desabamento carrega, grudado ao barro, a falta de planejamento, fiscalização, prevenção e ações estruturadoras de urbanização nos morros da Região Metropolitana do Recife. A madrugada da última quarta-feira, cujo saldo trágico contabilizou, em apenas três cidades, 12 mortos, reacendeu o sinal de alerta. O passado de imagens de corpos enfileirados, arrancados da lama, voltou a assombrar. Mal houve tempo de enxugar as lágrimas. Arriscar um recomeço. Exatos 40 dias antes, Camaragibe havia chorado a morte de uma mãe, seus cinco filhos e um vizinho. Em menos de dois meses, duas tragédias. Que lição tirar delas? A redução, nos últimos anos, da quantidade de vítimas soterradas por desabamentos no Grande Recife tirou do foco a urgência do problema. Mas as recentes mortes escancararam, a um preço altíssimo, que o dever de casa está longe de ter sido feito.
Agora, como sempre, a sequência de perdas humanas vai parar direto na conta da chuva. Como se ela fosse a única e grande culpada. Mas, para os especialistas em ocupação de áreas de risco, a forte concentração das últimas precipitações só fez expor a perda de prioridade que o tema vem enfrentando, fruto da sensação de que o pior já havia passado. “Lamentei profundamente ver as cenas todas. Mas não fiquei nem um pouco surpreso. Tenho a consciência de que as mortes não foram reduzidas em função do aumento da nossa eficiência, do planejamento urbano e do nosso trabalho de prevenção. Os números caíram porque não estávamos tendo chuvas intensas, concentradas como agora”, afirma o engenheiro Roberto Coutinho, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Grupo de Engenharia Geotécnica de Encostas, Planícies e Desastres (Gegep), que reúne estudiosos da UFPE e de outras universidades.
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O engenheiro cita o exemplo de Salvador, capital da Bahia, que, assim como o Recife, enfrentou um período de calmaria em relação a tragédias decorrentes de desabamento de barreiras. “Em 2015, numa mesma noite, morreram 19 pessoas em Salvador. Lá também estava há anos sem mortes em escala, com casos pontuais. Os gestores foram obrigados a fazer toda uma reestruturação, contrataram a universidade para ajudar, mapearam os pontos de risco e implantaram um sistema de alerta eficiente”, pontua. Roberto Coutinho reconhece que houve investimentos e avanços nas últimas décadas em algumas cidades do Grande Recife, mas ele avalia que as ações perderam força e as tecnologias usadas ficaram defasadas. “Não é que não se fez nada, mas não se fez na proporção que o problema exige. E na consciência de que esse intervalo de tempo não era representativo, em termos climáticos. Nós estamos há vários anos com períodos de seca. Se você não tem chuva forte, parece que está quieto, que o problema está resolvido, mas não está. Pelo contrário. Cada vez mais há áreas ocupadas de forma desordenada, sem assistência técnica adequada nem fiscalização”, reforça. O risco continua lá, escondido e silenciado.
PERIGO PERMANENTE
Basta olhar a geografia da Região Metropolitana para dimensionar o perigo que esse silêncio representa. As duas cidades mais populosas da RMR – Recife e Jaboatão dos Guararapes – figuram entre as seis com maior número de moradores em áreas de risco do País, segundo pesquisa divulgada no ano passado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em parceria com o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). Só nesses dois municípios, foram mapeadas quase 400 mil pessoas vivendo em alagados e encostas. Em toda a RMR, são mais de 700 mil moradores em áreas de risco. Como os dados do IBGE são baseados no censo demográfico de 2010, o tamanho do problema, na realidade, é muito maior.
Nos cálculos da Prefeitura do Recife, mais de 60% de seu território são cobertos por áreas de morro, onde vive um terço da população, o que, em números atuais, representa mais de 500 mil pessoas. O mesmo cenário se repete em Jaboatão do Guararapes. Pelas contas da gestão, quase 40% da população atual do município vivem em áreas de encostas, ou seja, cerca de 300 mil pessoas.
No caso de Jaboatão, a situação é ainda mais grave porque não foi só a população vivendo em morros que aumentou. Nos últimos dez anos, a quantidade de pontos de risco quadruplicou na cidade. Saiu de 3 mil para 12 mil locais mapeados pelo município. Em contrapartida, os recursos estão cada vez mais reduzidos, reflexo da crise econômica que atinge os municípios. O orçamento anual da Defesa Civil para dar conta de todo esse contingente com ações de vistoria, colocação de lonas e outras medidas preventivas é de apenas R$ 3 milhões. “Precisamos de obras estruturadoras. As lonas têm efeito positivo, mas não podem ser vistas como solução. Protegem, mas não resolvem”, afirma o coordenador de Defesa Civil de Jaboatão, Artur Paiva. Com larga experiência no setor, ele diz que o contingenciamento de recursos do governo federal para investimento nas áreas de alagados e encostas tem agravado a situação. “Aumentaram a densidade demográfica, as áreas de risco, mas os recursos, em contrapartida, são cada vez mais escassos.”
O somatório das ausências do poder público e carências de anos de investimento costumam desaguar no mesmo lugar: medo, insegurança e morte. As histórias que se escondem por trás de cada uma das tragédias individuais vividas na semana passada expõem a extrema vulnerabilidade de cada uma das milhares de pessoas que vivem em pontos de risco na RMR. Deixam de ser números frios. São vidas despedaçadas. Mesmo quando aparentemente a sensação é de segurança. O casal de idosos Natalício Vicente da Silva, 69 anos, e Ivonete Maria da Silva, 63, havia trocado de endereço para fugir do perigo. Há quase cinco anos, tinham deixado a casa condenada por ameaça de deslizamento, em Passarinho, Zona Norte do Recife, para outro lugar no mesmo bairro, onde imaginavam estar mais seguros. A morte veio de uma barreira mais distante. Os corpos de Natalício e Ivonete foram encontrados na cama, debaixo dos destroços. Nos próximos meses, a chuva vai embora, mas os milhares de moradores dos morros e encostas do Grande Recife continuarão lá. Esperando, embalados pelo assombro e pelas tristes imagens de agora, o próximo inverno chegar.