Esqueça a lógica matemática. Se cabem, ou não, 1, 2 ou 3 milhões de pessoas naquelas ruas estreitas. O Galo da Madrugada é grande de dentro para fora. Pelo que se conta, mas, sobretudo, pelo que é intangível. Tudo nele é superlativo. De dimensões irreversíveis. É como se, diante do espelho, aquela massa, explodindo de calor, refletisse a síntese da natureza gigante que é ser pernambucano. É coisa nossa ter o maior bloco de Carnaval de rua do mundo, com atestado e de papel passado. O Galo somos nós, mascarados ou não. É o folião, sozinho, fantasiado de sonho. É a multidão, mergulhada no devaneio coletivo de Momo. Nem precisa gostar de Carnaval para estufar o peito de orgulho ao ver o bloco, majestoso, rasgando a Avenida Guararapes sob o sol escaldante do meio-dia. Quem vai jura: a emoção é indescritível. “Tem que vir e sentir.” Para quem assiste, é de tirar o fôlego. No chão, no camarote, nas redes sociais, na tela da TV ou só de ouvir falar. É impossível ficar indiferente a essa imensidão chamada Galo da Madrugada.
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Não bastasse ostentar o carimbo “de maior do mundo” (o que naturalmente alimenta o ego do mais humilde dos pernambucanos), corre nas veias do Galo justamente o mais pernambucano dos ritmos. É o frevo, mais do que qualquer outra música, que determina as batidas do coração de cada um dos milhares e milhares de súditos/foliões que invadem as ruas do Centro do Recife no Sábado de Zé Pereira. É claro que, numa festa por onde passam mais de mil artistas, toca-se de tudo. Do axé ao sertanejo, do samba ao brega funk. Mas, se for para ir, tem que se deixar frever, de ponta a cabeça. Não por coincidência, e sim, destino e vocação, o Galo nasceu no mesmo canto que é um dos berços do frevo, do Carnaval e da própria história da cidade: o bairro de São José. Nasceu em casa, por assim dizer. Pelas mãos de umas 70 “almas”, que, na missão de resgatar a folia de rua, lá nos idos de 1978, fizeram surgir um amor para a vida inteira.
Sem saber, o Galo foi visionário. Em poucos anos, já era um sucesso. “As pessoas logo se identificaram com aquele movimento. Havia um inconsciente coletivo de voltar às origens. A saudade que os fundadores do bloco tinham do Carnaval de rua era, na verdade, a saudade de todos”, diz o presidente do clube de máscaras, Rômulo Meneses. Tanto que uma marca do bloco é o sentimento de pertencimento que cada um dos milhares de foliões carrega em relação ao Galo.
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“Eu aprendi a amar por osmose. Tenho a honra de ter ido ao primeiro desfile, no fim dos anos 70, levado pelas mãos do meu pai, menino ainda”, recorda André Rio, 49 anos, um dos cantores e compositores pernambucanos que é a cara do bloco. A história artística do músico foi forjada no Sol quente do Galo. Aos 16, começou a arriscar umas músicas, acompanhando a orquestra do tio, o maestro José Menezes. Em 1994, veio a estreia profissional no desfile. De lá para cá, são 26 anos ininterruptos comandando um dos 30 trios elétricos do cortejo. “O bloco sintetiza a alma carnavalesca do pernambucano. Eu já cantei em muitos lugares no Brasil e no mundo. O Galo é diferente de tudo”, atesta.
A primeira vez do cantor Almir Rouche se apresentando no Galo foi um susto. Tinha 18 anos. Deu medo, ficou impressionado. E não largou mais o bloco. A ponto de, anos atrás, negar uma possível participação no Cordão do Bola Preta, no Rio de Janeiro, só porque era o dia do Galo. “Há um fascínio que mexe com o imaginário, com o orgulho de ser pernambucano. Para mim, é identidade. É como se estivesse em casa.”
Apaixonado, antes de tudo, pelo Carnaval, o advogado Humberto Vieira de Melo exercita parte desse amor no Galo da Madrugada faz quase 40 anos. Há três décadas, ele promove um café da manhã em casa, que serve de ponto de encontro entre parentes e amigos. O grupo, que começou com quatro foliões, hoje reúne 69 pessoas. “O Galo permite que cada um brinque da forma como desejar. Ele respeita essa unidade, ao mesmo tempo em que forma um coletivo espontâneo, que sintetiza tudo o que representa o Carnaval”, diz o advogado, fundador do Bloco Pára-quedista Real. Entre tantas razões para explicar a devoção do pernambucano pelo Galo, ele arrisca uma que tem relação direta com o surgimento do Recife. “A cidade Maurícia nasceu no bairro de São José, assim como o Galo. O bloco representa a resistência, a restauração cultural de um bairro que foi destruído e que era o berço de clubes centenários, como Vassourinhas e Lenhadores.”
Folião de todas as horas, o ex-ministro Gustavo Krause foi prefeito do Recife quando o Galo dava seus primeiros passos. Lá, em 1980, no terceiro ano de desfile do bloco, o então gestor da capital foi descoberto pela imprensa, fantasiado, no meio da folia. Poucas vezes levou falta. “Deixei de ir quando operei o joelho e na minha lua de mel.” Hoje, é verdade, o ritmo é outro. “Mas o espírito do Galo se transformou numa paixão monogâmica até que a morte nos separe”, derrete-se Krause, garantindo que faz planos de marcar presença no desfile “até onde as pernas derem”. Como se precisasse, o ex-ministro lembra um diferencial que ajuda a apimentar a paixão pelo Galo da Madrugada. “É o único bloco que tem uma alegoria gigante.”
E, por falar nela, se existe uma polêmica certa no Recife, é essa. Não há como escapar. Todo ano tem. Bastou a primeira imagem do Galo 2020 ser divulgada, há 15 dias, pelo artista Leopoldo Nóbrega, que o burburinho se instalou. “Galo fuxiqueiro”, “Tá igual ao do ano passado”, “Pobre, mas limpinho”, “No desenho até que ficou bonitinho”. Os comentários logo pipocaram na internet. Era só uma prévia. Babado mesmo é quando o galináceo surge, imponente, na Ponte Duarte Coelho, às vésperas do Sábado de Zé Pereira. Aí, o coração já tá explodindo e já não se fala mais em outra coisa. Chegou a hora. Vem, vem meninada. Vem conhecer o Galo da Madrugada.