Na edição do Diário Oficial do Estado do dia 7 de março de 1979, o Presídio do Recife, inaugurado um dia antes, no bairro do Curado, Zona Oeste da capital, era anunciado como “a primeira obra planejada e construída dentro das recomendações básicas para uma programação penitenciária”. Pouco mais de 40 anos e duas mudanças de nome depois – virou Presídio Professor Aníbal Bruno logo após a inauguração e, em 2012, passou a se chamar Complexo Prisional do Curado –, a unidade representa o maior calo do combalido sistema prisional de Pernambuco. Ali, 5,7 mil homens se espremem onde deveria haver 1,8 mil. A estrutura interna é arcaica e precária. O presídio praticamente se mistura a uma das mais adensadas áreas do Recife. E, como se não bastasse, não há perspectiva imediata de melhora: a curto prazo, a única coisa a se fazer no Complexo do Curado é tentar administrar o caos.
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A face mais cruel do vácuo de comando nas três unidades do complexo (Frei Damião de Bozzano, Juiz Antônio Luiz Lins de Barros e ASP Marcelo Francisco de Araújo) vem na quantidade de mortes. Na última quinta-feira, um tumulto entre presos resultou no assassinato – a tiros – de um deles. O incidente ocorreu às 6h30 da manhã e motivou uma revista que terminou com a apreensão de quatro armas de fogo, facões e 20 celulares. Desde o início do ano, segundo o governo do Estado, foram 24 pistolas e revólveres apreendidos no sistema.
“Não há o que esconder. As armas entram, e a gente combate. E vamos continuar combatendo”, disse o secretário estadual de Justiça e Direitos Humanos, Pedro Eurico. Ele pretende evitar a entrada de roupas particulares e sacolas de comida no Complexo. “Já é assim nas unidades mais novas do sistema”, explica.
AUTOGESTÃO
No sistema prisional pernambucano, não há unidade com maior índice de autogestão que o Curado. “Os agentes penitenciários só controlam as guaritas e a parte interna do presídio. O interior é totalmente gerido pelos próprios presos”, explica o juiz aposentado Adeildo Nunes, um dos maiores especialistas no sistema penitenciário e que, por 15 anos, foi titular da Vara de Execuções Penais.
O que era modernidade em termos de arquitetura penitenciária em 1979, nos dias atuais virou um trunfo a favor da gestão controlada pelos presos. “Eles chegam muito perto dos muros, e, como a cidade cresceu em volta do presídio, ainda é fácil arremessar coisas para dentro”, diz o presidente do Sindicato dos Agentes Penitenciários (Sindasp), João Carvalho, salientando que, como existem scanners corporais na entrada, seria mais difícil as armas entrarem de forma velada.
Em janeiro de 2015, quando se iniciava o governo Paulo Câmara (PSB), o Complexo viu sua mais sangrenta rebelião. Foram dois dias de motim em que dois presos e um policial militar foram mortos. Se não fosse a precariedade estrutural da unidade, seria mais fácil para a polícia controlar o tumulto. “As forças de segurança simplesmente não conseguiam manter os presos dentro dos pavilhões, pois eles são construídos de modo a permitir um acesso mais fácil para fora”, lembra o juiz Luiz Rocha, à época na Vara de Execuções Penais responsável pelo Curado.
DESATIVAÇÃO
A solução mais drástica – a desativação do presídio – já foi tema de ações públicas e de um acalorado debate. Em 2016, o então promotor de Execuções Penais, Marcellus Ugiette (hoje aposentado), recomendou o fechamento do Curado, na esteira de várias recomendações da Corte Interamericana de Direitos Humanos (entidade da Organização dos Estados Americanos) por descumprimento de preceitos básicos de direitos humanos. Houve um princípio de negociações para desapropriações no entorno do presídio, mas o assunto foi sepultado.
“Não vamos desativar, pois temos uma superpopulação carcerária. Só quem acredita em Papai Noel embarca nessa história”, afirmou Pedro Eurico. “Isso (desativar o Complexo) só vai agravar o problema, pois os presos teriam que ser transferidos para outras unidades, que também já têm problemas de superlotação”, diz o atual titular da 19ª Vara Execuções Penais do Ministério Público, Fernando Falcão.
Ou, em outras palavras, é preciso um equilíbrio diário na corda-bamba para evitar tumultos maiores. E, a longo prazo, só se desativa a bomba-relógio que é o Complexo do Curado criando novas vagas no sistema. “Estamos construindo dez novas unidades. Já foram criadas 2,3 mil vagas nos últimos quatro anos, e mais 4,2 mil serão entregues nas unidades que estão sendo feitas”, diz Pedro Eurico, numa referência aos presídios de Araçoiaba, no Grande Recife, Itaquitinga, na Mata Norte, e Palmares, na Mata Sul. “É a única solução, pois a superlotação é uma das maiores causas dos problemas no Curado”, diz Fernando Falcão.
Para o presidente do Sindasp, é preciso adotar uma política de transição no Complexo. “Aumentar o efetivo de agentes, para que possam fazer rondas e não deixar os presos chegarem perto dos muros. E também reformar a estrutura interna, que favorece os presos.” A construção de novas vagas, no entanto, esbarra na implacável lógica do crime e no trabalho da polícia. “Apenas nos quatro primeiros meses deste ano ingressaram mais 1,5 mil detentos no sistema prisional”, diz Pedro Eurico.
Na solenidade de inauguração do presídio, em 6 de março de 1979, o então governador Moura Cavalcanti afirmou que “prisão não é um castigo, e sim um caminho para levar o homem de volta à sociedade”. Nada mais antagônico ao que se transformou o Complexo do Curado 40 anos depois. “Não é só criar novas vagas. Educação e trabalho, dentro e fora do presídio, são fatores para a redução dos conflitos”, afirma Adeildo Nunes. A relutância do poder público em cuidar do sistema prisional, segundo Fernando Falcão, também teria de ser vencida. “Não há apelo para os políticos gastarem dinheiro com presos, a opinião pública prefere que se gaste em outras coisas”.