JC – Em outubro de 2015, conversamos sobre o início das investigações da explosão de casos de microcefalia. Ao longo desses meses, qual o balanço que a senhora faz sobre a relação sem precedentes entre uma doença transmitida por mosquito e a ocorrência dessa malformação congênita?
ADÉLIA HENRIQUES SOUZA – Passamos a ter conhecimento de uma nova condição e estamos aprendendo que a evolução da microcefalia associada ao zika tem características próprias. Os comprometimentos relacionados a essa malformação são peculiares e afetam os pacientes de diversas formas, com perfil e evolução clínica distintos, mas claro que há características em comum. É um quadro heterogêneo com sintomas que vão surgir em algum momento do desenvolvimento.
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JC – Logo quando surgiram os primeiros casos, a maior dúvida entre os profissionais de saúde estava relacionada à forma com que as crianças iriam se desenvolver. Com base nas semelhanças e diferenças observadas ao longo do primeiro ano de vida, é possível traçar um perfil dos bebês?
ADÉLIA - A irritabilidade tem sido um marco nos primeiros meses dos bebês com microcefalia. Um detalhe é que muitos apresentam uma sucção eficiente nesse período (reflexo de sucção é vital para a amamentação; sem ele, o bebê não consegue mamar no peito). Quando a sucção passa a ser voluntária, as crianças com microcefalia começam a apresentar dificuldade para se alimentar. Elas nascem com distúrbio do desenvolvimento cortical (importante causa de epilepsia) e, por isso, ficamos em alerta para monitorar quando as crises convulsivas vão começar. Apesar de o cérebro ser severamente comprometido, esses bebês não começam a vida com crises epilépticas, mas podem vir a apresentá-las em algum momento do desenvolvimento. Uns têm crises precocemente; outros, não. E nem todos têm apresentado um quadro de difícil controle.
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JC – Há outros pontos em comum entre os bebês com microcefalia?
ADÉLIA – Quase todos têm espasticidade (distúrbio de controle muscular que causa rigidez), atraso no desenvolvimento psicomotor e alterações visuais diversas. Mas acompanho paciente que não tem distúrbio ocular. Isso mostra como a evolução da microcefalia é distinta. No meu consultório particular, por exemplo, atendo seis bebês com microcefalia e que têm quadros clínicos diferentes.
JC – Ao observar o desenvolvimento dos bebês ao longo do primeiro ano de vida, algo tem surpreendido?
ADÉLIA – Aqueles que nasceram com o perímetro cefálico (PC) bem pequeno são severamente comprometidos, mas as crianças com PC nem tão pequenos (os bebês, por exemplo, com 31 centímetros de PC) surpreendem porque têm exames de imagem com comprometimento num grau muito severo, mas tiveram capacidade de recuperação de PC, mesmo aqueles que apresentaram existência de zika no líquido cefalorraquidiano (LCR). São bebês que nem dão a impressão visual de que têm microcefalia. Nesses casos, uma pessoa que não é especialista pode nem perceber a condição.
JC – E como estão as mães hoje?
ADÉLIA – A partir do momento em que o aumento incomum dos casos de microcefalia veio a público, a sociedade se tornou solidária a essas mães, que começaram a se sentir acolhidas. Até o INSS se organizou rapidamente (para acelerar a concessão do benefício). Além disso, unidades de saúde abriram as portas para acompanhar essas crianças. Criou-se um mutirão de solidariedade, conforto e apoio às famílias.