Ao chegarem ao Brasil, em 1500, os portugueses, além de perceberem as riquezas naturais aparentemente inesgotáveis, visualizaram outra possibilidade de lucro/dominação: a doutrinação religiosa. Com a Reforma Protestante de Martinho Lutero, deflagrada em 1517, a igreja católica perdeu milhares de fiéis e, assim, percebeu no Novo Mundo a possibilidade de angariar novos seguidores. Desde então, a religiosidade tornou-se parte quase indissociável do DNA do país – e um campo de batalha nos sentidos literal e figurado. Em seu novo trabalho, Altíssimo, Pedro Vilela tenta analisar parte da questão a partir da influência das igrejas neopentecostais na contemporaneidade, nos âmbitos público e privado, político e social. O solo estreia sábado (14), às 19h, no Teatro Arraial.
A relação de Vilela com a religião remonta à sua infância. Quando pequeno, morava na Dantas Barreto, no centro do Recife, ao lado de uma igreja. Era no espaço religioso onde passava parte do seu dia, aprendendo os dogmas do catolicismo, tornando-se uma espécie de coroinha. Na adolescência, se afastou da igreja, convertendo-se posteriormente ao protestantismo.
A nova doutrina, no entanto, não foi aceita sem questionamentos. Se observava aspectos positivos na crença no divino, também incomodava-se com as práticas perpetuadas pelas instituições religiosas, como a monetização da fé. Foi daí que nasceu o desejo de montar um espetáculo que abordasse a questão sem simplismo. Com o recrudescimento da intolerância no Brasil e a religião sendo usada como justificativa para ataques às liberdades individuais, aos direitos humanos e à arte, o assunto se mostrou ainda mais urgente e atual.
“Essa minha relação com a fé vem acompanhada de muita inquietude. Penso que a religião pode estabelecer uma relação muito bonita, mas que é desestruturada por esses agentes [a institucionalização da fé]. O cristianismo tem a Bíblia como livro guia, mas que, na prática, não segue os ensinamentos dele. Aí me pergunto: o que faz as pessoas permanecerem nessa estrutura? O espetáculo cruza isso”, explica.
Os trabalhos em torno da montagem começaram ano passado, quando o pernambucano convidou Alexandre Dal Farra para assinar a dramaturgia. O paulista já havia se debruçado sobre a temática em Mateus, 10, que lhe rendeu o Prêmio Shell de Melhor Autor em 2012. Desde dezembro do ano passado, Pedro Vilela e Dal Farra passaram a trocar ideias, visitaram juntos igrejas no Recife e foram costurando o espetáculo. Inicialmente intitulado Fogo no Altar, o trabalho foi desenvolvido lentamente, em parte pela questão geográfica – Pedro do Recife e Dal Farra de São Paulo –, assim como pelas atividades paralelas da dupla. Esses hiatos, porém, acabaram revelando novas possibilidades para a investigação proposta pelo pernambucano.
“Passar um tempo sem mexer no material para depois voltar a ele e me encontrar com Pedro foi importante. Nesse trabalho, me interessa não só fazer uma crítica direta, porque considero uma coisa meio óbvia. As pessoas já criticam de forma unilateral as igrejas neopentecostais”, explica Alexandre Dal Farra. “Me interessou também pensar sobre o nosso próprio ceticismo cínico. Nós que supostamente não acreditamos em nada – os que ‘não se deixam enganar por esses canalhas da igreja evangélica blá, blá, blá’ –, temos nossas crenças. Estamos no ápice do neoliberalismo, pautados pelo dinheiro. As palavras fé e crédito têm a mesma raiz em grego, então, me parece que nossa capacidade de pensar e sentir se estrutura em narrativas que nos ajudem a construir a nossa trajetória pessoal. Perdemos a capacidade de ver o mundo como algo que pode ser diferente, melhor. A utopia coletiva desaparece e dá lugar a uma utopia meio privada”.
Altíssimo insere-se em um projeto artístico de Alexandre Dal Farra que busca investigar questões que permeiam a sociedade brasileira, principalmente aquelas incômodas, para as quais preferimos não olhar. Essa inquietação, que não poupa o próprio autor nem a plateia, está presente em obras como a Trilogia Abnegação, sobre a subida ao poder e a queda da esquerda no Brasil, e Branco, sobre o racismo institucionalizado.
“Me interessa muito olhar para as estruturas sociais naquilo que elas estão presentes em nós. Tenho convicção de que é impossível nascer, ser criado e viver em um país tão desigual, racista, machista, religioso e retrógrado como o Brasil e não ter dentro de você essa estrutura. Ela te forma, por mais que você tente ser legal. Não adianta você achar que é limpinho, que não tem nada disso vai dizer que os outros são horrorosos, dizer que os pastores neopentecostais são canalhas e os políticos ruins, fazendo esse denuncismo sem perceber que isso também está em você. Isso me interessa muito, entender em mim, onde eu sou opressor, onde isso me forma e usar a cena para que haja espaço para que isso saia e que possa se olhar para essa questão”, enfatiza Dal Farra.
No espetáculo, Pedro Vilela atravessa três processos em frente à plateia. Em um primeiro momento, ele se apresenta como um pastor em momento de reflexão e autoanálise. Olhando para sua audiência, ele disseca estratégias de persuasão, aponta os caminhos que garantem a plena realização de um culto.
Na segunda camada do solo, o artista expõe o que ele chama de “entre-lugar”, aquele próprio ao processo de pesquisa e criação do espetáculo. “É a parte em que criamos esse papel baseado nos lugares que visitamos, as coisas que vimos. É o reflexo da nossa tentativa de entender tudo isso”, reforça Pedro.
Na parte final, o ator divide com a plateia suas experiências e anseios, revelando as camadas biográficas presentes na dramaturgia. Para ele, esse momento de confissão estabelece uma ponte importante na fruição do solo, pois expõe a complexidade do tema. Para o ator e diretor, o espetáculo tem uma forte simbologia não só por tocar em questões pessoais, mas também por marcar seu retorno aos palcos.
Integrante do grupo Magiluth por sete anos, ele deixou o coletivo em 2015 e desde então se dedicou à produção – está à frente da Trema! Plataforma, que produz um festival e edita revista de artes cênicas.
“Passei dois anos sem fazer nada em termos de criação, cicatrizando feridas. Sempre fui um grande defensor do teatro de grupo e de repente me vi sozinho em uma sala tentando construir um espetáculo. Então, tem sido um processo doloroso e prazeroso, tem desconstruído certas verdades. É um lugar sem muita clareza para mim, que só vai ser concretizado com o encontro com o público. Visualizo esse momento como um mergulho no abismo escuro”, fala Vilela.