O Recife não seria o mesmo sem Abelardo da Hora. Sem sua arte, que é expressão do amor e um grito de luta de uma ideologia voltada para o povo. Nesta terça (23) o Brasil perdeu um de seus maiores artistas plásticos – homem visionário e incansável, de olhar sensível e particular. Ele tinha 90 anos de idade. Hoje nós te agradecemos, Abelardo, por haver amado tanto essa cidade, sua eterna galeria de arte a céu aberto.
Nunca faltou sorriso e sempre transbordaram amor e dedicação em Abelardo da Hora. Nos olhos de um senhor de 90 anos viviam o menino brincalhão e o comunista engajado, unidos em um artista incansável. Nesta terça (23), o Recife se despede de um dos mais entusiastas pernambucanos que a cidade já viu viver e um dos que melhor soube traduzir o próprio olhar sobre seu redor – entre beleza, o erotismo, a alegria e a misérias – de maneira a fazer das nossas ruas e espaços urbanos uma grande galeria de arte a céu aberto.
Leia Também
Abelardo morreu de manhã, no Hospital Memorial São José, após 34 dias internados com problemas respiratórios. O pulmão, nos últimos anos o seu maior adversário, terminou por ganhar a luta, mas sem abalar o enorme legado de doçura e inteligência do mais ilustre filho da Rua do Sossego, no boêmio bairro da Boa Vista. O corpo do escultor está sendo velado desde ontem às 17h40 na Assembleia Legislativa de Pernambuco. O enterro ocorre hoje, às 11h, no Cemitério de Santo Amaro.
Entre gestos de amor e carinho, familiares (ele tinha sete filhos e era viúvo há quatro anos de Margarida Lucena) e amigos foram prestar as últimas homenagens a Abelardo, ontem ao cair da tarde. Entre eles, secretária de Cultura do Recife, Leda Alves; o secretário de Cultura do Estado, Marcelo Canuto; o presidente da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado, Severino Pessoa; e o músico e irmão do escultor, Claudionor Germano. “Abelardo foi uma pessoa que, em toda a sua obra, denunciou a riqueza e a miséria humana, seus amores e desamores. Não era somente um criador, mas um homem comprometido com o seu povo”, pontuou Leda Alves, que foi uma das primeiras pessoas a chegar na Assembleia.
“A morte do meu irmão foi uma perda irreparável para a cultura da nossa terra, perda maior para a nossa família, que tinha nele um espelho, um exemplo de dignidade, de respeito e de trabalho”, afirmou, emocionado, Claudionor.
Abelardo da Hora foi um visionário; um dos grandes responsáveis pela beleza artística da capital pernambucana. Graças à ideia dele, no Recife passou a ser obrigatório, por lei, desde 1960, na primeira gestão de Miguel Arraes na prefeitura, que prédios com mais de 1.500m² tenham obras de arte na sua decoração. Abelardo amava a cidade e fez de ateliê a Aurora, a Soledade, a Imperatriz, a Conde da Boa Vista com a mesma intensidade dos discursos fervorosos e marcantes levantados por ele e outros companheiros de luta na Faculdade de Direito e no Sítio Trindade, à época em que defender o povo era crime.
Seu Bebé, como era chamado carinhosamente pelos amigos e familiares, sonhava com a liberdade. Aquela liberdade que conheceu ainda nas terras da Usina Tiúma, em São Lourenço da Mata, onde nasceu e seu pai trabalhava como homem de confiança do proprietário. O espírito livre que ele descobriu na beleza da natureza e no encanto do verde e da amplitude do horizonte.
No Recife, para onde se mudou em 1932, Abelardo da Hora viu a felicidade dos meninos pobres que brincavam nas ruas e reproduziu em traços e cores de maneira descomunal na sua série de desenhos É hora de brincar. Ele sabia como poucos exaltar e denunciar, ao mesmo tempo, a nossa realidade: bonita pela alegria do povo e dolorosa pela desigualdade social. “Quando você pega um trabalho, seja desenho, seja escultura, e manifesta nele a situação de vida da população, você está educando politicamente. É um protesto que você faz”, disse o artista na sua última entrevista ao Jornal do Commercio, em julho deste ano, para a série de reportagem comemorativas aos seus 90 anos.
Artista múltiplo, Abelardo foi escultor, pintor, gravador e desenhista, e fez da arte uma voz da luta comunista. Seu início de carreira foi ainda como aluno do Colégio Industrial Professor Agamenon Magalhães. Aos 17 anos, depois de passar pela Escola de Belas Artes, burilou-se no ateliê das terras da Várzea do Capibaribe do industrial Ricardo Brennand, onde foi também o mestre do hoje famosíssimo Francisco Brennand. Não demoraria para Abelardo alçar voo.
Com uma obra regional e universal, ganhou destaque entre os modernistas brasileiros. Em 1946, no Rio de Janeiro, passou a acompanhar as discussões do Partido Comunista Brasileiro (PCB) – foi filiado até o golpe de 1964, quando o PCB se recusou a fazer uma revolução pelas armas. Em 1948, Abelardo mostrou ao Recife sua primeira exposição individual, lançando sua obra A fome o brado, em que mãe e filhos agonizam na miséria e um braço erguido representa o desejo de mudança. Ali estava a mais bela tradução das vozes da geração que queria ver liberta a nação.
Foi também através da exaltação da cultura popular que Abelardo fez denúncias e instigou o povo pernambucano a ter orgulho de si e lutar por uma vida digna. Com o sonho de transformar o Recife numa grande galeria de arte, Abelardo da Hora passou a dar aulas gratuitas de pintura, desenho e escultura no Recife. Agora ele parte, mas deixa conosco o legado mais precioso de um artista de dimensão estética, plástica e social: fez da sua obra a nossa identidade. Esculpiu e desenhou nossas falhas e perfeições como dificilmente alguém o fará com tamanha precisão.