Decidido a captar as cores e temperaturas locais, Lula Cardoso Ayres intensifica, a partir dos anos 1930, o método que fez dele um artista “vivencial”. Na pintura ou na fotografia, o modernista de primeira hora busca fraturar a superficialidade nas imagens de um Nordeste que lhe interessa, tanto ou mais quanto material narrativo, como projeto identitário – seus desenhos produzidos nas imersões nos terreiros de candomblé do Recife, por exemplo, seriam amplamente usados no I Congresso de Estudos Afro-Brasileiros, proposto por Gilberto Freyre em 1934.
“Lula foi agente ativo na invenção de uma identidade cultural para Pernambuco e, de modo geral, para o Nordeste do Brasil, num momento em que – histórica, simbólica e geopoliticamente – esse pedaço do País se afirmava como região”, pontua Clarissa Diniz, que, em parceria com Eduardo Dimitrov e Jamille Barbosa, assina a curadoria. A exposição é aberta hoje, às 19h, para convidados e amanhã para o público em geral, na Caixa Cultural do Recife.
Realizada pela Fundação Gilberto Freyre, com 70% das obras recrutadas do acervo familiar, a mostra reúne 208 itens sob um título que resume a preponderância do artista: Lula Cardoso Ayres – Arte, Região, Tempo. Matriz do que hoje é mais amplamente reconhecido como o Modernismo Pernambucano – um movimento de afirmação de narrativas visuais preocupado em incorporar a modernidade sem abrir mão da dicção identitária regional –, Lula Cardoso Ayres confirma a tese cada vez mais difundida pelo historiador potiguar Durval Muniz de Albuquerque.
O autor de A Invenção do Nordeste lembra que cientistas sociais e artistas da primeira metade do século 20 foram fundamentais para, ao eleger signos e clichês, estabelecer as visibilidade e dizibilidade identitárias da região. “Para Lula e seus interlocutores, era também a disputa em torno da ambição de fundar uma identidade nacional moderna, por eles posta em questão entre os anos 1920 e 1950, pelo reconhecimento de especificidades locais irredutíveis a generalizações geopolíticas de caráter nacionalizante”, comenta Dimitrov.
Se o corpo é elemento privilegiado em alguns de seus contemporâneos também filiados a projetos que podem, com nuances distintas, serem associados a construções de identidade, como o Cícero Dias da sensualidade onírica dos engenhos ou o Carybé da mítica religiosa encarnada, na obra de Lula Cardoso Ayres essa corporalidade é, sobretudo, social. Lula percorreria periferias sociais ainda raramente cartografadas para representá-las num desenho instantâneo denominado “pose-rápida”. Alguns desses desenhos podem ser vistos na mostra, uma exposição que, pelo tamanho, não poderia se restringir a uma de suas facetas.
Da caricatura irônica da primeira metade do século 20 aos cartazes que mostram sua face gráfica, várias técnicas exibem a versatilidade de Lula Cardoso Ayres. Dos cartazes, podemos ver tanto o promocional para a antiga Festa da Mocidade do Recife como o criado especialmente para candidatura de Gilberto Freyre como deputado federal pela UDN.
Entre os destaques que comprovam o investimento etnográfico como também a originalidade de composição, estão os famosos caboclos de lança frutos de suas investigações pelos maracatus da Zona da Mata. Com as fitas das lanças e cabeças dos caboclos usadas, como aponta a crítica Clarissa Diniz, como elementos de estruturação da imagem.
Distribuída entre as falsas paredes expositórias do térreo da Caixa Cultural do Recife, a exposição é subdividida em nove eixos temáticos. O primeiro, chamado Formação, reúne as obras primeiras, dos anos 20. Outro núcleo é batizado de Cerâmica, com pinturas, numa atitude de incorporação identitária, inspiradas na matriz cromática da cerâmica popular pernambucana. Não apenas a do Alto do Moura, em Caruaru. “Em nossas pesquisas, descobrimos que Lula foi também muito impactado pela cerâmica de Canhotinho, nas proximidades de Caruaru”, diz a curadora Jamile Barbosa.
Em Manifestações Populares, está o trabalho de Lula para a consolidação de um repertório imagético essencialmente caro à ideia de “autenticidade pernambucana”. “O propósito é refletir sobre a contribuição do artista no Movimento Regionalista capitaneado por Gilberto Freyre, a partir das proposições originais e fundamentais para que o próprio movimento se configurasse como tal”, explica Jamile. Em quase todos os momentos, uma luminosidade tropical é acionada como índice: luz como identidade.
Lula Cardoso Ayres: Arte, Região e Tempo. Caixa Cultural Recife. De 15 de junho a 27 de agosto. De terça a sábado, das 10h às 20h; domingos, das 10h às 17h.