O que o encerramento sumário de mostra sobre sexualidade no Santander Cultural nos diz sobre moral e arte

Depois de pressão de grupos como o MLB, a instituição fechou, no último domingo, a mostra QueerMuseu
Bruno Albertim
Publicado em 11/09/2017 às 19:31
Depois de pressão de grupos como o MLB, a instituição fechou, no último domingo, a mostra QueerMuseu Foto: Agência Estado


O elenco de artistas trazia nomes do cânone, não apenas de potência estética, mas devidamente celebrados por uma entidade da natureza primordial da instituição responsável pela mostra, o mercado: Cândido Portinari, Lygia Clark, Leonilson, Adriana Varejão. Assumindo, contudo, um erro que não cometeu, o Santander Cultural em Porto Alegre resolveu silenciar alguns dos discursos visuais mais contundentes produzidos por artistas sobre sexualidade, identidade e erotismo. Com uma rápida canetada, após a grita de alguns grupos incomodados com o teor sexualmente franco da mostra, o braço de ação cultural do banco espanhol no Brasil resolveu simplesmente mandar fechar a exposição QueerMuseum, em Porto Alegre, no último domingo. Com 270 obras, ousada e inédita, deveria durar até o fim da primeira semana de outubro. Numa tentativa ainda estéril de silenciar a grita, o banco acabou, enfim, calando a mostra.

Localizada na capital gaúcha e com possibilidades de percorrer outras praças do País, a mostra reacendeu o velho debate entre arte, moralismo e censura. Entre elogios pelo respeito aos bons costumes fraturados e ataques de que, agora, assumiu a censura, a página oficial do Santander Cultural recebeu, até o fim da tarde de ontem, nada menos que 28.503 avaliações. Seria apenas mais uma exposição em Porto Alegre, de repercussão tímida em alguns veículos especializados pelo País. Com o incidente, corre o risco de se tornar a mostra mais comentada deste ano (e de outros). Nem os marqueteiros mais eficientes do banco conseguiriam popularizá-la a este ponto – ainda que, numa reunião atrás da outra, façam agora de tudo para fazer o Brasil esquecê-la. Com opiniões estimuladas em dezenas de cidades, a mostra virou o exemplo mais recente sobre censura à arte no Brasil. Difícil outro evento de artes visuais roçar o status. O caso ganhou repercussão até no jornal americano The Washington Post.

Rapidamente fragilizado pelos ataques, o Santander Cultural não soube manter os argumentos do discurso que justifica a mostra. Nitidamente assustado, preferiu calar-se a enfrentar o debate. “Entendemos que algumas das obras da exposição Queermuseum desrespeitavam símbolos, crenças e pessoas, o que não está em linha com a nossa visão de mundo”, informou o banco, numa nota oficial confeccionada às pressas por uma equipe acionada em pleno domingo. “Pedimos sinceras desculpas a todos os que se sentiram ofendidos por alguma obra que fazia parte da mostra”, seguia a nota, após a torrente de críticas materializada, sobretudo, na internet. Correntistas ameaçaram cancelar suas contas.

Muito provavelmente por ser um banco, antes de ser instituição cultural, as reclamações assustaram. “Faço minhas as palavras da maioria dos reclamantes: Gostaria de saber se os membros da presidência/diretoria desse banco e demais idealizadores dessa exposição irão colocar as tais “obras de arte” na sala de jantar de suas residências após o término da exposição...se gostam tanto, deveriam deixá-las expostas para seus filhos e netos admirá-las...Que tal almoçar/jantar vendo isso que estão divulgando? Nada a declarar... Vergonha total, baixaria e falta de bom senso. Se o Santander não deixar de apoiar essas iniciativas absurdas, fecharei a minha conta...)”, disse o post mais replicado na página do banco.

Do outro lado do front, sobram acusações de subserviência ao moralismo obscurantista e, claro, à censura. “Deus ajude esse País. Se uns cavalos fascistas já estão censurando a nossa arte. Deus ?! Não sei o que vem por aí”, publicou o cantor Otto. “É uma censura grande o que o Santander fez por pressão da Milícia Reaça do MBL. O movimento pré-nazista na Alemanha começou assim. O banco se posicionou da pior forma possível, ainda mais porque a mostra era financiada por dinheiro público”, analisa o artista plástico Lourival Cuquinha, conhecido pelo teor provocativo de suas obras, capazes de questionar os limites e sentidos da legalidade.

“Infelizmente, essa comoção das “pessoas de bem” que, de um momento para o outro, assumem o papel de críticos, teóricos e historiadores da arte pós-especializados em qualquer m*, não é novidade. Nem na história antiga e nem na história recente da arte. Portanto, não estamos lidando com nenhuma novidade. A arte e os artistas sempre enfrentaram os retrógrados, os conservadores e os pudicos hipócritas de plantão (...) O que espanta é que, em meio a essa “comoção”, os retrô-agentes embutem a concepção de que a “verdadeira” arte eleva, transcende, conforta, nos põe em contato com o numinoso, se torna um “alívio” ou expurgo das durezas da vida. Respeitável público: arte não é religião, não exige reza e nem tem igreja. Pode propiciar, sim, uma suspensão momentânea do comezinho humano e nos elevar aos céus (não necessariamente aos dos monoteísmos), mas comumente provoca, confronta, questiona e põe o dedo na ferida em tudo aquilo que é humano, demasiado humano”, discorreu o professor Afonso Medeiros, da Universidade Federal do Pará.

O tiro de misericórdia que fez o banco recuar na mostra pensada e organizada pelo curador Gaudêncio Fidelis foi a ação orquestrada pelo Movimento Brasil Livre. A facção gaúcha do MBL chamou o Santander de “vergonha dos gaúchos”, incitando, sem meias palavras, aos clientes encerrarem suas contas. Num vídeo com mais de 400 mil visualizações desde o último sábado, integrantes do movimento dizem que a exposição “só tem putaria (sic), só tem sacanagem (sic)”. “Há pouco, tinha crianças olhando essa ‘arte’ escarnecendo a Cristo”, diz o blogueiro Felipe Diehl no vídeo. “O curador dessa obra, Gaudêncio Fidelis, esse cara deveria estar preso”, sustentou. “Olha o Satanás no meio”, disse outro blogueiro do MBL. Imagens como as de sexo com animais em O Jardim das Delícias Terrenas, de Hieronymus Bosch, uma obra-prima da arte ocidental, de 1504, deram mais combustível para os ataques. Chegaram a dizer que a exposição incentiva a zoofilia.

CENSURA E REPRESSÃO

Censura e repressão não são novidade na história da arte. Tanto clássica, quanto contemporaneamente. Em setembro do ano passado, obras do artista Mimsy foram retiradas às pressas de uma galeria de Londres por conter bonecos infantis travestidos de terroristas do Estado Islâmico. O nome da obra, ironicamente, era Paixão por Liberdade. Em 2014, o artista australiano Paul Yore foi finalmente inocentado da acusação judicial de promover “pornografia infantil”. O motivo foi sua instalação, exposta um ano antes, em que embalagens de biscoito, flores artificiais, fotos pornográficas, algumas de sexo gay, e manequins, se misturavam numa forma de, segundo as palavras do artista, “mimetizar a forma como a sociedade capitalista contemporânea se intromete nos reinos mais privados de nossa existência”. O título da obra não poderia ser menos provocativo: Everything is Fucked.

Os exemplos locais não são raros, nem novos. Ainda no começo dos anos 1980, a artista plástica Tereza Costa Rêgo por pouco não foi oficialmente excomungada por um padre olindense. Quando ocupava o cargo de diretora cultural da Prefeitura de Olinda, autorizou o bonequeiro Silvio Botelho a confeccionar um presépio natalino com os personagens de papel marché à imagem e semelhança dos bonecos gigantes do Carnaval da cidade. Para acender mais a sanha carola, a Nossa Senhora tinha um dos seios à mostra durante a amamentação do Menino Jesus. O presépio foi incendiado num ataque anônimo, o fato motivou discussão nacional sobre liberdade de expressão e, em programas como o domingueiro Fantástico, personalidades como Fernanda Montenegro prestavam solidariedade a Tereza, a Botelho e ao presépio de Olinda. Num gesto de altivez, o então prefeito José Arnaldo mandou reconstruir o presépio.

A mesma firmeza de discurso, no entanto, o Santander Cultural não quis encampar. Nos anos 1990, o braço cultural do banco no Recife foi, tão ou mais que qualquer instituição oficial, o principal canal de fomento à arte contemporânea em Pernambuco. Ainda que apoie, mais timidamente, hoje, as ações do Museu do Estado de Pernambuco sempre carente de recursos, o fechamento do Santander Cultural Recife evidencia, sim, que a musculatura de ação da instituição no campo das artes vem definhando.

Depois da apressada nota do domingo, o banco passou a enviar, pessoalmente, a seus correntistas, uma correspondência retificando que entende a importância artística da mostra – e, assim, tentar se livrar da pecha de censor. Mas informa que não pretende compactuar com o mal estar causado com a exposição – e, assim, procura se vestir da capa de conciliador.

Ao, contudo, manter a decisão de encerrar a exposição, confirma que não entende ainda que o papel de um instituição cultural não é apenas colorir o domingo em família de seus clientes com cultura alegre, mas o de reconhecer que arte existe para fazer refletir, provocar, problematizar esteticamente entidades como a própria moral social – esta também uma grande obra de ficção coletiva em permanente mutação. Se, depois disso tudo, ao desagradar gregos e troianos, ainda punir de alguma forma os profissionais envolvidos no projeto, terá, sim, atualizado com as cores do século 21 as tintas daqueles que, um dia, apedrejaram por imoralidade o “David” de Michelangelo ou, por 300 anos, consideraram a "Venus de Urbino", de Tiziano, uma das imagens mais repugnantemente indecentes do Ocidente.

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