Muito doente, pouco antes de morrer pela violência de um câncer, seu pai lhe sugeriu: “Por que não pintas para passar o tempo?”. Depois de demonstrar gosto pela guitarra e pelo futebol, e menos vontade de uma carreira formal – embora, no futuro, se formasse em administração e economia – um jovem Ferreira acataria a ideia. “Peguei uma revista, tirei um rosto de um velho. Foi um dos meus primeiros quadros”, diz o artista que, prestes a completar 70 anos de idade, consolidado como um dos nomes obrigatórios da pintura moderna pernambucana mais recente e um dos principais ceramistas do País, volta, agora, ao estilo de seus primeiros anos de pintura. Com cerca de 50 telas, o artista abre, nesta sexta, a exposição Cinquenta Anos Depois.
Para comemorar meio século de vida dedicado à pintura, Ferreira reúne obras pintadas nos últimos oito anos no conjunto de galeria e ateliês onde fincou, no bairro de Campo Grande, há décadas, os templos particulares de sua arte. “Houve uma época em que era muito difícil conseguir lugar para expor”, comenta ele, lembrando porque construiu, ali, um conjunto de ateliês e galerias próprios.
Ali, o público vai poder rever o Ferreira primitivista, naïf, dos primeiros tempos: os quadros desta última série são inspirados no começo de sua pintura. Ao longo da carreira, Ferreira imprimiria estilos diversos em séries distintas – todas claramente influenciadas pela pintura moderna do século 20 confirmando a assertiva de que Picasso, definitivamente, condicionaria todos os tempos pictóricos depois de si.
A pintura de Ferreira exala erudição e ironia em séries notáveis. No conjunto de quadros Ferreira e os Mestres, dos anos 90, usa tintas tórridas para retratar a si próprio diante de grandes nomes da pintura ocidental como Basquiat, Matisse e o próprio Picasso – um misto de reverência e ironia está impresso na série. Em outra, batizada de Cabeça dos Amigos, realizada nos anos 2000, pessoas de sua intimidade e vários dos artistas do seu círculo são retratados num estilo que caracterizaria uma certa pintura pernambucana dos anos 1990 em diante: de estilos diversos, ora pinceladas mais impressionistas, ora composições de um surrealismo irônico, elegante, ora angulações cubistas, para retratar seus personagens sob o signo do grotesco.
Agora, ao retomar sua fase mais pueril, Ferreira continua numa pintura francamente hedonista, mas impressa com tintas de inocência. “Lá no começo, minha pintura era primitivista pelo simples motivo de que eu não sabia pintar, não tinha as técnicas, que vieram depois, com o tempo, pintando”, diz ele, diferenciando este momento, intencional, de um primitivismo mais espontâneo. Assim, sem grandes rasgos de luz ou profundidade, sua nova pintura traz uma conjunção de seres humanos e paisagens harmoniosamente sociais – como os arruados arquetípicos de interior em cores primárias. Florestas e lagos, como derivados da pintura de paisagens europeia, emolduram os personagens e suas casas.
Em quase todos, homens e mulheres são retratados na harmonia de folguedos tradicionais ou encontros idílicos. Sim, o hedonismo remanesce como um traço da pintura do artista: apenas em congraçamento social, em alegria compartilhada, o homem pintado por ele perece alcançar a felicidade possível. “Mais moço, o popular, as festividades, tudo isso influenciava muito”, diz ele, confirmando como a mão tende a pintar o que o olho vê.
Ferreira – 50 anos depois. Abertura hoje, 19h. Rua Catulo da Paixão Cearense, 263, Campo Grande.