A diáspora negra do cotidiano também no mundo das artes

Ao constatar o que considera um epistemicídio da história negros e negras na história da arte brasileira, curadora Joana D`Arc Lima monta exposição com dez artistas negros contemporâneos
Bruno Albertim
Publicado em 19/10/2018 às 19:01
Ao constatar o que considera um “epistemicídio” da história negros e negras na história da arte brasileira, curadora Joana D`Arc Lima monta exposição com dez artistas negros contemporâneos Foto: Pernambucana Ana Lira realiza performance interativa sobre identidade, marcas e esquecimentos


Há dois anos, a professora e pesquisadora Joana D’Arc Souza Lima realizava uma pesquisa sobre arte africana, quando, diante de seus anos acumulados de produção acadêmica e curadoria, constatou uma lacuna. “Não vi a presença e enxerguei a ausência”, diz ela, sobre a quase inexistência do corpo negro, como produtor ou poética, nas exposições, acervos, escolas, museus, academia e na historiografia da arte brasileira.

Ao constatar o que considera um “epistemicídio” da história dos povos e indivíduos negros e negras no Brasil, aprofundou a questão em conversas com a artista paulistana Rosana Paulino, doutora em Artes Visuais pela Universidade de São Paulo, dona de uma incisiva produção sobre as fraturas sociais, raciais e de gênero no Brasil, com ênfase nas heranças nem sempre visíveis da escravidão. Dessas conversas, nasceu o projeto da exposição Os da Minha Rua: Poéticas de R/existência de Artistas afro-brasileiros.

Com patrocínio do Funcultura e abertura hoje no Museu da Abolição, na Madalena, a mostra reúne a produção de dez artistas contemporâneos de várias latitudes nacionais. Todos, deliberadamente, negras e negros: Ana Lira (PE), Dalton Paula (GO), Edson Barrus (PE), Izidoro Cavalcanti (PE), José Barbosa (PE), Maré de Matos (MG/PE), Moisés Patrício (SP), Priscila Rezende (MG), Renata Felinto (SP/CE), além da própria Rosana Paulino (SP).
A curadoria é Joana D’Arc: “Foi a partir desse estudo e dessa aproximação com a arte negra, e de um diálogo intenso com Rosana, que pensei em trazer para o Recife essa exposição. Escolhi artistas contemporâneos negros e negras, que trabalham em diferentes dimensões das questões que subjazem ao tema da cultura africana e da cultura afro-brasileira, passando pela mitologia Ioruba, pelas religiosidades afro-brasileiras, pela crítica social, pela oralidade e ancestralidade, para ocupar esse espaço museológico”, discorre Joana, num gesto deliberado de evidenciar os impasses e tensões “em relação à ausência de visibilidade” destes sujeitos artistas.

Para os artistas, a exposição não é sair da zona de conforto. “Para a gente, zona de conforto não existe, nunca existiu. Nossos corpos estão em permanente deslocamento, ainda que com zonas de respiro”, poetiza a pernambucana Ana Lira, que na exposição vai realizar uma proposta de vivência performática com uma dinâmica de compartilhamento e escuta sobre invisibilidade como ferramenta de poder.

Na exposição, a mineira Maré de Matos vai abordar a ancestralidade dos índios botocudos no Vale do Rio Doce (MG), a partir de uma tragédia contemporânea. Com prática em diversos suportes e também poeta, pretende discutir a maior tragédia ambiental do Brasil, produzida pela mineradora Samarco, em 2015, em Minas, através da representação e visualidade de práticas exploratórias históricas. “Como mineira, do Vale do Rio Doce, a narrativa evidencia que minha memória é atravessada e por vezes confundida com a prática da exploração”.

MULATO

Outro a discorrer sobre o lugar social do negro na mostra, o pernambucano Edson Barrus apresenta a obra Cão Mulato, um lambe-lambe que busca confrontar discursos puristas, “ensinando numa bula como produzir um cão vira-lata geneticamente”. Na obra, o artista toca em questões de um mundo de espaços e indivíduos híbridos. O artista busca meios para dar concretude e visualidade ao que considera a idéia-síntese de Brasil: “O Cão Mulato, o cachorro sincrético, o vira-lata tirado do lixo e ungido a raça nacional”. “O artista se coloca no papel de um cientista e liquidifica, com mordacidade, ideias de pureza de raça e de evolução genética através do uso da tecnologia. Tomando o cão mulato por símbolo de brasilidade, enxerga o país – assim como o seu próprio trabalho – como um espaço mestiço, transacional e para sempre in progress”, escreveu, a respeito, o pesquisador e curador Moacir dos Anjos.

O pernambucano Izidoro Cavalcanti apresenta dois trabalhos inéditos. Sonho Guardado em Branco é um objeto composto por uma cama de campanha, pintada de branco dentro uma camada de algodão branco, “Uma matéria convidativa para o gesto de pegar, mas todo encerrado em uma caixa de acrílico”. Hoje, na abertura, ele realiza uma performance: “Vou colocar meu corpo como objeto de resistência dando continuidade a Sonho Guardado em Branco. "Disponibilizarei uma quantia de cem camisas brancas de algodão, todas empilhadas, em cima das outras, dobradas como se vende nas lojas. Usarei meu corpo nu, sentado, e, com rapidez utilizarei da troca da camisa. Uma forma de falar da troca de pele, para ser aceito na sociedade branca”, conta ele que, veterano, se diz íntimo dos processos exclusivos. “Os círculos de poder das artes são quase todos embranquecedores, depende de quem cura, de quem convida, de quem vende. Sobra pouco espaço para os negros nesses espaços de circulação”.

Os da Minha Rua: Poéticas de R/existência de Artistas afro-brasileiros. Abertura: 19 de outubro, 19h. Museu da Abolição. Rua Benfica, 1150, Madalena. Até 16/12

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Museu da Abolição Os da Minha Rua: Poéticas de R/existência de Artistas afro-brasileiros
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