O ano era 1961. Sem que houvesse qualquer aproximação pessoal ou profissional, o artista plástico Francisco Brennand recebeu uma encomenda especial dos irmãos Gilberto e Aluísio Farias, proprietários do Banco da Lavoura de Minas Gerais, para fazer a sua maior obra em cerâmica até então: um grande mural para colocar no flanco da agência que iriam abrir na Rua das Flores, no Bairro de Santo Antônio, vizinho à igreja devotada ao padroeiro do Recife. Intransigentes, os banqueiros haviam decidido que o tema seria a Batalha dos Guararapes, que resultou na expulsão dos holandeses de Pernambuco pelos portugueses e brasileiros.
"Eles exigiam que fosse a Batalha dos Guararapes e me deram novas dimensões, e essas dimensões eram para mim absolutamente novas porque correspondiam a um friso não propriamente aos tamanhos habituais que eu trabalhava, quer seja com pintura a óleo ou pintura mural, feita com cerâmica", relembrava Brennand, numa manhã de sol de sábado que se perde no ano de 2005.
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Não seria a primeira vez que Brennand exploraria o tema da expulsão dos holandeses em seus trabalhos. “Eu cheguei da Europa em 1953 e logo no ano seguinte estávamos comemorando aqui no Recife, com o máximo de solenidade, o Tricentenário da Restauração Pernambucana, em pleno governo de Etelvino Lins de Albuquerque, tendo como chefe da Casa Civil Jordão Emerenciano e diretor do Museu do Estado Zé Maria Albuquerque, descendente de Jerônimo Albuquerque. Olha as coincidências, se é que existem. Um descendente de Jerônimo Albuquerque foi ao Maranhão tirar os franceses de lá e aqui ainda dizem que São Luiz do Maranhão deve alguma coisa aos franceses. Zé Maria aproximou-se de mim e solicitou que eu fizesse uma série de peças de cerâmica: pratos, placas, desenhos e o que fosse possível, alusivos à Batalha Guararapes. Comecei a estudar a partir do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco (IAHGP), onde existem vários retábulos, e comecei a fazer desenhos diretos daquilo tudo que eu via na Igreja da Conceição dos Militares e na própria Igreja dos Guararapes. Essa quantidade enorme de desenhos, de monotipos, alguns foram expostos na época ao lado dos pratos, placas, cerâmicas e objetos cerâmicos que eu fiz relacionados com esse mesmo tema, e que me serviriam alguns anos depois”, conta Brennand, que tem tudo documentado em exposição na Accademia, um dos espaços expositivos do Instituto Oficina Cerâmica Francisco Brennand, inclusive um diário inédito no qual comenta passo a passo a criação do mural.
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Apesar de relutar em aceitar a encomenda, o artista terminou cedendo e recorreu a aqueles trabalhos para o seu projeto, que sintetiza seu pensamento sobre o surgimento da nação brasileira e sua própria arte. Os desenhos feitos para o Tricentenário da Restauração Pernambucana, no seu entender, “foram capitais e indispensáveis para a abordagem desse tema. Não sei se seria capaz de enfrentar esse tema da responsabilidade que apresentava sobretudo com a dimensão desse mural que tinha 33 metros de comprimento, não chegando a 2 metros e meio de altura, portando um friso longo”.
Definindo-se como “uma pessoa curiosa”, Brennand tinha aproveitado o seu “período francês” para visitar museus e estudar a história da arte, o que o levou a tomar conhecimento, através de uma reprodução, da famosa tapeçaria de Bayeux, feita na época em que o duque Guilherme II, da Normandia, invadiu a Inglaterra e venceu o exército inglês sob o rei anglo-saxão Haroldo II na Batalha de Hastings. “Essa é a narração e a glorificação desse feito”, comenta o artista.
Imagens das obras de Brennand
Na tapeçaria de Bayeux, frisos contam o feito histórico enquanto molduras fecham a faixa central, que é a batalha propriamente dita, com emblemas relacionados com a própria história da batalha, que seriam episódios que necessitam de atenção. “Essa tapeçaria de Bayeux foi para mim uma orientação definitiva de como deveria tratar toda essa composição. Em cerâmica com grande diversidade de desenhos, simplificação de planos, não poderia ser de forma alguma uma narrativa com fundo naturalista ou realista, à maneira, vamos dizer, da Batalha dos Guararapes de Victor Meireles, que seria o retrato, ou a fotografia ou uma cena cinematográfica da narração de uma batalha, onde você vê poeira, fumaça de arcabuzes, canhões, soldados feridos, sangue e até mesmo gritos”.
Registro deste momento épico da história pernambucana, o painel A Batalha dos Guararapes é uma das maiores obras-primas da arte mural no Brasil e das América e tem um sentido especial para Brennand. “No meu caso, é uma batalha idealizada, história de uma vitória nacional brasileira sobre o rico e armado invasor”.
O mural da Rua das Flores começa da esquerda para a direita, com uma proclamação do comandante Barreto de Menezes em forma de poesia, feita pelo poeta e amigo César Leal. “O poema é uma maravilha. É na verdade uma inscrição no mural porque é curta, necessariamente curta, qualquer pessoa que passa pode parar e ler, não tem dificuldade porque são quatro estrofes, quatro versos”. No outro extremo do mural há um poema de outro amigo, Ariano Suassuna, no momento exato quando “os holandeses em desabalada corrida saem fora do mural em demanda ao mar”. “Mas você não vê o mar, adivinha que ele está a alguns quilômetros. É uma história de bandeiras, de vitoriosos e bandeiras destroçadas. A bandeira vitoriosa não foi a bandeira portuguesa, nem a bandeira do Império, foi a bandeira brasileira. Eu antecipei na mão de um brasileiro descalço e com chapéu de palha a bandeira da República”, afirma o artista, se vangloriando da ousadia.
De acordo com Francisco Brennand, essa “antecipação histórica” “proporcionou críticas de alguns jornalistas, dizendo que eu era ignorante, que como um acontecimento ocorrido no século 17 poderia ter a bandeira Nacional da República? Eles não perceberam que aí nesse lugar, quase no centro desse mural, estava um verdadeiro símbolo dessa história, era a antecipação da nacionalidade, a bandeira pré-figurava a nacionalidade. Aquilo que Gilberto Freyre falou – honrar o espírito – soube definir a partir de Guararapes que o Brasil passou a ter endereço certo. Isso é notável, curioso, fatal, como poderia ser de outra maneira?”, questiona.
Naquele início dos anos 60, relembra Brennand, havia um “clima de expectativa e exaltação da nacionalidade a cada dia que se passava; nós corríamos para saber o novo capítulo dessa história em quadrinhos, que foi o governo de Jânio Quadros”, que havia sido eleito presidente da República, mas ainda não tinha tomado posse.
“Não havia nenhuma moderação na execução do painel. No ato de pintar, você não pode pintar enlouquecido, porque senão a pintura vai deixar essas marcas. Mas o espírito estava enlouquecido e à vontade, há uma certa fúria em retirar a pátria do lugar, isso fica bem nítido. No meu mural não existe nenhuma dessas carnificinas modernas, você não vê sangue, você vê sempre os nossos, não existe nenhum tombo com o pernambucano morto. Os cadáveres são de holandeses, são reconhecidos porque estão sempre bem armados, de capacetes etc. E alguns episódios que ficam rodeando o mural onde contam alguns detalhes da história da guerrilha e como nós combatemos e sabemos combater os holandeses implacavelmente sem nenhuma trégua, sem nenhum desfalecimento”, exalta o desenhista, pintor e ceramista.
Um quebra-cabeça de 1.400 graus
Os desenhos feitos em 1954 foram logo tomados e reaproveitados onde podiam para entrar no mural Batalha dos Guararapes. “Eu fiz uma quantidade, centenas de desenhos tirados do natural, exposições dos diferentes guerreiros, eu tinha modelos fossem com espada de madeira ou com falsas lanças e não havia necessidade de vestir os brasileiros com roupa da época, eles estavam vestidos como nós nos vestimos atualmente, às vezes de calças arregaçadas, poderia até ser uma calça jeans e as camisas que nós usamos, agora na cabeça sempre um chapéu de palha, encimado com pena de arara que eram as nossas cores, azul, amarelo e verde. Os holandeses são reconhecidos pela armadura, pelos capacetes, pela presença dos canhões. Eu trabalhei febrilmente na execução desses desenhos e logo em seguida na execução desse mural que complicava enormemente porque uma coisa é você desenhar com um lápis, em cima de um papel, na comodidade de um ateliê e outra coisa é você pegar um mural de 33 metros de comprimento por 2 metros e meio, sem que você possa colocá-lo em um cavalete vertical. Um conjunto de cerâmica sobreposta com dois metros e meio de altura não poderia ser colocado num cavalete porque isso tudo poderia escorregar e quebrar”.
A solução encontrada por Brennand foi pintar todo o mural em cima de mesas, marcando cada uma das peças com número de ordem e de fila, como entrava nos fornos a 1.400 graus repetidas vezes. “Era preciso, na saída dos fornos, colocá-las de costas para que observasse a ordem de fila da peça para que ela fosse novamente rearmada e novamente repintada e isso foi numa seqüência mais ou menos feliz durante todo o começo do ano de 1961”, relembra Brennand. Em agosto, no entanto, aconteceu um acidente dentro do forno: parte do mural sofreu uma avaria muito grande. “Era necessário recomeçar tudo ou ter a coragem de retrabalhar esse mural com a densidade que você tem de remover toda aquela tinta que saiu encrespada, eu até diria deteriorada, com a impossibilidade de você cobri-la sem que ela prejudicasse o desenho posterior”, relembra. “Tivemos a coragem, com os meios apropriados, em conjunto com muitas pessoas, marcar tudo isso a mão, e deixar tudo com uma platitude razoável para você repintar em cima. À maneira de um imenso palimpsesto, método usado pelos monges quando raspavam as suas iluminuras e recomeçavam sempre”.
O sentimento nacionalista, de brasilidade de Brennand está presente em todos os detalhes dos desenhos, que formam uma espécie de história em quadrinhos. O mural está repleto de símbolos, quer sejam da batalha travada como também da cultura, da fauna e da flora pernambucana. Dos indígenas, aparecem os tambores. Da natureza, a presença de caju, que ele aproveitou para contar um episódio sangrento ocorrido em Olinda. “Os holandeses estavam tirando as armaduras, os chapéus, deixaram as armas de lado e estavam juvenilmente se aproveitando dos cajus, que deviam apontar naquela época nas praias de Olinda, como ainda hoje abundam em algumas regiões nossas, e é um fruto delicioso. É para nós e deveria ser para eles também. Naquele momento, um grupo de guerrilheiros pernambucanos assediou-os e os degolou implacavelmente. Eu misturo a castanha de caju nas cabeças dos holandeses, então você não sabe mais o que é castanha de caju e o que é cabeça dos holandeses, isso é um símbolo que está ali presente”, explica.
No mural também estão presentes timbus, jacarés, onças. “Em homenagem ao meu amigo Ariano Suassuna, lembrando a onça castanha com a qual ele abre seu poema e identifica o povo brasileiro. Há também urubus que estão na espreita deles (os holandeses). Na história nós não morremos, somos imortais”.
Imortal como a obra do próprio Francisco Brennand, que elegeu o mural como sua obra-prima. “Eu elegi o mural porque o mural saiu da Várzea e foi feito com terra brasileira e está ligado a toda história da Várzea e da paixão e do fascínio do meu pai pela matéria cerâmica”, justificou o magistral ermitão do Engenho Santos Cosme e Damião.
Projeto de restauração
O banco Santander, a quem pertence o mural, confirmou, por meio de sua assessoria de imprensa, que existe um projeto de revitalização da obra. Além da restauração da cerâmica, os planos envolvem a remoção da obra da Rua das Flores (onde se encontra desde 1971) e sua instalação no bairro de Boa Viagem, Zona Sul do Recife, para criar um espaço público de convivência. O projeto não tem data para ser executado, pois ainda se encontra no estágio dos trâmites burocráticos.