Entrevista

Entrevista: Albertina Carri reinventa o sexo no cinema

'As Filhas do Fogo', novo filme da argentina, está em cartaz no Cinema São Luiz.

João Rêgo
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João Rêgo
Publicado em 26/03/2019 às 12:26
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'As Filhas do Fogo', novo filme da argentina, está em cartaz no Cinema São Luiz. - FOTO: Reprodução
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Um dos principais nomes que ajudaram a consolidar o “novo cinema argentino”, Albertina Carri vem realizando bons longas e curtas desde o começo do século. Os Loiros (2003), seu longa de estreia, mostrava traços que marcariam toda sua filmografia adiante. Um cinema questionador e frontal - que precisa apenas do imagético para tecer suas críticas.

Seu mais novo e quinto longa-metragem, As Filhas do Fogo foi eleito o melhor filme da competição argentina do festival Bafici. A obra pode ser considerada a mais gráfica de Albertina, a quem ela mesmo se refere como ‘pornô lésbico’. Em entrevista ao JC, a diretora fala sobre o filme, influências e importância do cinema que vem fazendo.

Entrevista // Albertina Carri

Jornal do Commercio - De onde surgiu a ideia do filme?
Albertina Carri – Nunca posso responder esta pergunta, em nenhuma das minhas obras, porque as ideias vêm de muitos lugares ao mesmo tempo. Poderia dizer que todos os meus filmes vêm do desconforto que sinto em viver neste mundo tão injusto, tão desigual e governado, em sua maioria, por ideais mesquinhos. Eles também surgem de uma forte necessidade de tornar visível essas imagens que o sistema se ocupa de obliterar.

JC – Como situar As Filhas do Fogo na filmografia da diretora considerando a progressão das formas que ela vem evoluindo dentro do seu cinema? Por exemplo, em termos de conteúdo e abordagem, o filme parece mais um retorno ao seu curta Barbie también puede estar triste, de 2002, do que o que vimos em La Rabia ou Geminis, obras mais recentes (não cito Cuatreros porque a ideia é ater-se às ficções)?
Albertina – Quando As Filhas do Fogo estreou em Buenos Aires, um jornalista escreveu: “Albertina Carri não existe, Albertina Carri é o pseudônimo usado por um grupo de quatro, seis... dez cineastas, para assinar as obras que cada um vai filmando. Fazendo com que acreditemos que seja uma obra particular de uma única diretora. Um truque de marketing cultural, uma piada de intelectuais, uma travessura artística para espantar a burguesia.”
Lembro dessa citação por ela me parecer precisa, principalmente no final, porque acredito que é ali que está a senha para o meu cinema. O que todos os meus filmes compartilham, tanto ficções como documentários, longas ou curtas, é essa forte necessidade de “espantar a burguesia”, de romper com a ordem das coisas e dar aos espectadores a possibilidade de pensar em outras ordens, em outras formas de estar no mundo, talvez mais poéticas, e consequentemente, mais autônomas.

JC – Como é trabalhar com o pornográfico de uma forma direta, sempre mantendo o cuidado para não objetificar e entregar naturalidade as cenas de sexo?
Albertina – Algo que eu me deixei levar foi: a entrega. E com ela, tudo que se segue. Acredito que isso é o que faz com que as cenas de sexo tenham essa naturalidade, vitalidade, e potência que o ato sexual tem quando realmente acontece.

JC – Carolee Schneemann foi uma diretora que trabalhou muito bem a descons-trução do sexo e dos corpos no ato, quando representados no cinema. Há alguma influência da obra dessa artista em As Filhas do Fogo? Ou até de outros cineastas como Gaspar Noé? 
Albertina – As influências são infinitas e no caso destas menções, posso pensar em Carolee como uma delas, mas nada do cinema de Noé – que me soa pueril e hegemônico. Eu prefiro pensar em cineastas como Agnes Varda, Pier Paolo Pasolini e David Cronenberg, porque acredito que todos eles tem uma preocupação de desconstruir tanto a narrativa cinematográfica como o mundo que habitamos, que se pensarmos bem, são a mesma coisa.

JC – Quais são as principais referências cinematográficas que norteiam a filmografia da diretora?
Albertina – Minha maior influência vem da literatura e não do cinema. Esse é um dos motivos que decidi dar ao filme o título de uma romance amaldiçoado, de um escritor meio condenado como foi Gerard de Nerval. O seu livro Filhas do Fogo (Filles du Feu) traça retratos estereotipados de diferentes mulheres, mas a estrutura é tão inquietante e misteriosa que termina tornando o texto, não só livre de preconceitos narrativos, como também libertário. Até por isso exerceu influência em escritores como Proust e Artaud, considerados os pais da literatura moderna ocidental, junto a Thomas Mann (e aqui eu poderia mencionar também a influência de Visconti em minha forma de ver o mundo). Loucos, homossexuais e suicidas, a humanidade não merece se perguntar sob qual regime a cada dia amanhecemos? Sendo assim, o cinema e suas imagens que se proliferam como fantasmas não tem nenhuma responsabilidade direta com nossa vida cotidiana? Eu acredito que sim, e por isso devemos estar muito atentos a tudo que vemos.

JC - As Filhas do Fogo representa para o cinema latino americano (e argentino) que vem sendo feito hoje, e qual a importância da discussão que ele elucida?
Albertina – Eu acho que a importância do filme é que ele torna visível algo que nos ronda, no entanto, estava escondido. Então, de certa forma, a importância é questionar porque não é conveniente mostrar isso? Por que não podemos ver o prazer feminino em estado de celebração? E a quem isso prejudica?

JC – A diretora possui algum projeto futuro? Se sim, ou mesmo se não, qual o norte que o seu cinema pode tomar após As Filhas do Fogo?
Albertina – Toda vez que termino um filme parece que não posso fazer outro. No caso de Cuatreros, o anterior à As Filhas do Fogo, todo mundo me dizia “E agora o que vais fazer?”, como se eu já tivesse dito tudo ali. Pelo contrário, enquanto seguir existindo vulneráveis e violados, direitos não reconhecidos, abusos de poder e pensamentos mesquinhos capitalistas, seguirei fazendo meus filmes.

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