“Esta é uma obra coletiva de ficção baseada na livre criação artística e sem compromisso com a realidade”: o aviso que a Rede Globo faz questão de colocar nos créditos finais de todas as suas novelas foi posto em xeque ao fim do capítulo da trama das nove A Lei do Amor desta quarta-feira (30), com reprise no início desta quinta-feira (1). O folhetim de Maria Adelaide Amaral e Vincent Villari encerrou com uma cena que gerou bastante polêmica no meio do artesanato de Pernambuco: Tião (José Mayer), num ataque de fúria, resolveu destruir o ateliê da ex-mulher Helô (Cláudia Abreu), quebrando várias peças da galeria. O problema é que muitas delas tem origem pernambucana, e seus produtores não gostaram de ver suas obras serem espatifadas no chão.
Cena de A Lei do Amor mostrou Tião (José Mayer) destruindo artesanatos de Pernambuco. Foto: Raphael Dias/Gshow
A 48 km do Recife, Mestre Zuza foi um dos artistas que teve a experiência de assistir, em Tracunhaém, a cena no momento em que foi exibida. E o pior: viu uma obra sua – de arte sacra em barro – ser destruída pelo personagem de José Mayer. Além do constrangimento, Zuza se sentiu denegrido: “Mais que ver a minha obra no chão, doeu muito ouvir Tião dizer que aquilo não era arte, era ‘lama suja’. Sabemos que é uma ficção, mas nosso trabalho não podia ser exposto dessa forma”, lamentou o artesão, que disse ter recebido várias ligações após a sequência ir ao ar.
Obras de artistas como Lula Gonzaga, Mestre Heleno e Luiz Benício de Garanhuns foram identificadas na cena. Para aumentar o disparate, Tião prosseguiu com o surto de destruição cantando Qui Nem Jiló, um sucesso de Luiz Gonzaga. Mestre Zuza ainda levantou um outro embróglio: ele não foi procurado pela Globo, nem autorizou o uso de seu artesanato na trama.
Solidário ao lamento de Zuza está o ceramista Mano de Baé, também de Tracunhaém. Assim como o conterrâneo, sua arte foi exposta na galeria de Helô. Mas com ele, o procedimento foi outro. “Fui procurado pela direção da novela durante a última Fenearte. Além de adquirirem minha obra, assinei um termo de autorização de imagem”, afirmou. Mano não viu a cena, mas ficou sabendo da repercussão: “Será que um artesão venderia a sua obra para vê-la ser quebrada? Não fazemos arte pela arte, tem sentimento em cada peça. Fiquei muito sentido pelo que aconteceu”.
O arquiteto pernambucano Carlos Augusto Lira, um dos maiores colecionadores de arte popular do Brasil, assistiu a sequência e sugeriu uma maneira de tentar reparar a saia justa. “A Helô bem que poderia vir à Pernambuco para procurar esses artesãos e reerguer o seu ateliê com novas peças deles. Seria uma forma gentil de pedir desculpas”, colocou.
Em nota, a Comunicação da Globo justificou o ocorrido: “A galeria de Helô é formada por peças de artistas de todo Brasil, sendo alguns reconhecidos mundialmente e outros que nunca expuseram. (...) Para a realização das cenas citadas, foram confeccionadas réplicas das obras. (...) A cena não foi uma critica à arte nem aos artistas, foi um ato em que um homem inescrupuloso está fora de controle, com muita raiva de sua ex-mulher”.
Responsável pela Fenearte, a Agência de Desenvolvimento de Pernambuco (AD-Diper) e o Centro de Artesanato alegou em nota que “não têm maiores detalhes sobre a aquisição de peças de artesãos de Pernambuco por parte da TV Globo para a novela, pois a negociação foi feita diretamente entre as partes” e reiterou que “os artesãos de Pernambuco estão dentre os mais expressivos mestres do mundo no segmento” e “nenhuma cena de novela vai mudar essa realidade”.
A Secretaria de Cultura se revelou solidária aos artesãos do Estado, se colocando à disposição para promover a valorização artística. “Que esse episódio sirva para o debate sobre o papel da arte popular como manifestação artística de alto valor simbólico para a nação”, concluiu o órgão em nota.