Chacrinha, o Velho Palhaço, completaria cem anos hoje

Abelardo Barbosa revolucionou o rádio e a TV no Brasil
JOSÉ TELES
Publicado em 30/09/2017 às 10:09
Abelardo Barbosa revolucionou o rádio e a TV no Brasil Foto: foto: Rede Globo/Cedoc/Divulgação


“A propósito de locutor, há um novo calouro ao microfone da terra. É Abelardo Barbosa, que vai satisfazendo, e muito promete ainda. Desde que vença aquela nervosismo, aliás muito natural em quem se inicia”. O nervosismo, detectado numa nota na imprensa local em 1938, persistiria até o final da vida de Abelardo Barbosa, que passaria, a partir dos anos 40, a ser conhecido como Chacrinha. Em 1982, num rumoroso retorno à TV Globo, antes da estreia, encheu-se de antidiarréicos, e ainda se garantiu vestindo três cuecas. Confessava que, antes de entrar em cena, inevitavelmentem acometiam-lhe fortes cólicas intestinais.

No entanto, José Abelardo Barbosa de Medeiros era eloquente e desinibido. Quando, em 1935, veio com a mãe e os quatro irmãos morar no Recife, se enturmaria rapidamente, foi um dos mais destacados alunos do curso de medicina. Em 17 de julho 1938, cursando o segundo ano, teve, pela primeira vez, uma foto estampada na imprensa (no Jornal Pequeno) ao fazer palestra na Rádio Clube, cujo tema foi “O álcool e suas consequências”. Falou como representante da Sociedade Acadêmica de Medicina, da qual era membro (estava no segundo ano do curso).

Mas antes disso, seu nome aparecia com frequência nos jornais, na política estudantil, em apoio ao Padre Arruda Câmara, como um dos diretores de um time de futebol, o Rul Sport Clube (as iniciais de Refinadores Unidos Limitada) ou como músico do Jazz Bando Acadêmico, e “speaker” (locutor), da Rádio Clube de Pernambuco. A desenvoltura no falar certamente foi aprimorada pela experiência em ajudar o pai a vender material de aviamento, de porta em porta, em Caruaru, onde morou até os cinco anos.
Nascido há exatos 100 anos, em Surubim, no Agreste pernambucano (então pertencente a Bom Jardim, do qual se desmembrou em 1928), Abelardo Barbosa deixou a cidade natal com seis meses. Seu Antonio Medeiros, o pai, mascate, foi procurar melhoras de vida em Caruaru.

Cinco anos mais tarde, iriam para Campina Grande, onde seu Antonio prosperou, chegou a ter uma frota de dez caminhões, trabalhando para a indústria algodoeira.  Uns dez anos depois, o pai faliu, entregou-se à boêmia, e a mãe do futuro apresentador, dona Aurélia Barbosa, preferiu a separação. De família abastada, mas rígida em relação aos preceitos da época, ela não
quis voltar separada para Surubim, e optou por morar no Recife, onde abriu uma pensão, na Rua da União, na Boa Vista, onde alugava quartos para comerciários e estudantes.

Abelardo Barbosa sofreu uma crise de apêndice no palco, enquanto tocava no Jazz Bando Acadêmico. Obrigado a fazer uma cirurgia, perdeu o ano escolar, e sua vida seria radicalmente alterada. No final de 1939, aceitou um convite que o maestro Nelson Ferreira fez a ele e um amigo para tocarem no conjunto do Bagé, vapor do Lloyd Brasileiro, em viagem à Europa. Provavelmente, o convite só lhe foi feito porque outros músicos o recusaram. O mundo estava em guerra desde o ano anterior, e o oceano era cruzado por navios de guerra. Segundo contemporâneos no Recife, Capiba, Fernando Lobo, Nestor de Holanda, Abelardo Barbosa
tocava bateria muito mal.

REVOLUÇÃO NO RÁDIO

No Rio de Janeiro, Chacrinha teve passagens, sem destaque, pela Rádio MEC, Vera Cruz e Tupi, antes de chegar a rádio de Niterói. O sotaque “nortista” o prejudicava. Graças a amigos do Recife bem situados no Rio, sobretudo Fernandio Lobo, que o conhecia desde quando moravam em Campina Grande, ele foi contra-regra no programa de Paulo Gracindo, secretário de Almirante (lendário cantor e compositor, parceiro de Noel Rosa). A emissora niteroiense seria mais um emprego (contratado como discotecário). Mas ali ele definiria sua carreira.

O Rio vivia a febre dos cassinos (que seriam proibido dois anos depois pelo presidente Dutra), Abelardo Barbosa criou mais um, e revolucionou o rádio carioca e brasileiro. Começeou a chamar atenção pelo clima anárquico do seu cassino, onde se ouviam vozes, gritos, apitos, barulhos de talheres, de garrafas e copos. Tinha um maluco no rádio, espalhou-se a notícia. Logo ele estaria na Rádio Guanabara, que exigiu que mudasse o nome do programa para Cassino Guanabara, mas durou pouco. Abelardo saiu de lá para a Rádio Tamoio, e o programa voltou ao nome original. Com a estrutura que a Tamoio lhe dava, Abelardo Barbosa
colocaria em prática sua revolução na radiofonia brasileira.

“No rádio, quando comecei com o Cassino do Chacrinha só havia programas de penumbra, poesia, tangos, para o pessoal dormir. Então eu inventei um programa para acordar o povo. Eu batia lata, apertava buzinas, tocava sino, fingia que havia gente dançando – aqueles troços todos. Já naquele tempo todo mundo achava maluco. Agora, pensem bem: não é possível um cara de noite, sozinho, dentro de um estúdio de rádio, de cuecas, tocando sino, batendo gongo e gritando terezinhaaaa”.

OS URUGUAIOS

Chacrinha fazia tanto sucesso que, depois que o jogo foi banido do país, policiais deram uma batida na Tamoio, achando que ali funcionava um cassino de verdade. Numa noite de 1952, dois casais de uruguaios, elegantemente vestidos, desceram de um táxi em frente ao prédio onde funcionava a Tamoio e pediram ao porteiro que os levassem ao Cassino do Chacrinha. Espantaram-se, e decepcionaram-se, ao constatar que o programa consistia apenas de um apresentador, no palco do auditório vazio, com a parafernália de objetos que usava para fazer barulho, mais um técnico no estúdio manejando um acetato com sonoplastia pré-
gravada. Os dois casais vieram do Uruguai especialmente para se divertir naquele cassino que, pelo rádio, lhes parecia tão animado.

A história do rádio no Brasil é dividida em dóis capítulos principais: antes e depois do pernambucano Abelardo Barbosa. Ele acabou com a obrigatoriedade de locutores de voz empostada, de palavreado pomposo e de textos seguidos à risca. A cada edição do Cassino, Chacrinha criava bordões, tocava todos os gêneros musicais, não raro mais de um disco ao mesmo tempo. Foi também um dos pioneiros e enveredar pela publicidade, negociando com patrocinadores e ganhando comissões como corretor de anúncio. Alguns anos mais tarde, Chacrinha seria pessoa jurídica, JABM Propaganda e Publicidade Ltda. A emissora não contratava José Abelardo Barbosa Medeiros, mas a JABM, que lhe cederia seu artista Chacrinha. Nos anos 50, ele faturava também com a então rentável profissão de compositor de música carnavalesca, que divulgava em seu programa e nas colunas que escrevia em jornais. 

REVOLUÇÃO NA TV

O rádio não era o veículo ideal para o irrequieto Chacrinha. Na transição para a televisão, os grandes nomes do rádio viram-se de repente ultrapassados. Abelardo Barbosa reinventou-se e inventou a primeira linguagem nacional na TV brasileira. Inicialmente, relativamente bem comportado na TV Tupi, depois escrachado e anárquico na TV Rio, com a Discoteca do Chacrinha e logo com o programa de calouros, A Buzina do Chacrinha. A partir de 1960, quando as principais capitais do país possuíam canais de TV, e passaram a retransmitir seus programas, Abelardo Barbosa seria ídolo nacional, com índices de audiência que seguraria
até o último programa que apresentou.

DONDOCAS

Seus programas eram multicoloridos, mesmo sendo a TV brasileira em preto & branco. Nunca repetia uma roupa, que podia ser de sheik árabe, bebê ou de noiva. Levava aos palcos as Chacretes, dançarinas que rebolavam com roupas ousadas, e assistentes como Russo. Os bordões foram chegando: “Au, au, vocês querem bacalhau”, jogava-se bacalhau, então comida de pobre, para a plateia. Chacrinha inventou o happening quando a expressão ainda nem era usada.

Claro, a crítica do bom gosto caía de pau. Aos que consideravam seus programa debaixo nível cultural rebatia: “Eu não tenho obrigação de fazer programas culturais. Quem tem obrigação de levar cultura para o povo é o governo, é o Ministério da Educação. Meu programa é feito para divertir, é uma forma de levar lazer ao povo. E isso eu sei fazer, e acho que o povo gosta. Agora acho vulgar e até grotesco anunciar jantar regado a champanha e caviar nas colunas sociais, enquanto tantos brasileiros passam fome”. No Jornal do Chacrinha, que escrevia no jornal Tribuna da Imprensa, alfinetava a classe média alta, que o esnobava:

"Do alto de sua filosofia, eis que o augusto pensador de Surubim, que vos endereça estas bem traçadas linhas, chega à conclusão sábia e realista – de que as dondocas que figuram em todas as colunas sociais da imprensa paulista (e também da carioca, é claro) têm indiscutível vocação para chacrete. Querem saber de uma coisa? Querem mesmo? O que as dondocas querem é dançar, cascatear e aparecer. Se pudessem, estavam lá, no doce charminho diante das câmeras da TV  Falava grosso, amparado pelos alta pontuação do Ibope. Em 1964, chegou a 61 pontos, audiência nunca alcançada até então
na TV brasileira.

INIMIGO DO ROCK

Até se render ao rolo compressor do iê-iê-iê, Chacrinha era defensor incondicional da música popular. Se nos anos 50 atacava o bolero mexicano e o tango argentino, na TV declarou guerra ao rock and roll: “Era preciso que alguém no rádio tivesse coragem de condenar essa praga. Eu, Chacrinha, tomei a peito essa iniciativa, e vou brigar até o fim da vida contra essa invasão de um ritmo doido, que está tornando nossa juventude meio biruta”. Paradoxalmente, Roberto Carlos incluiu Chacrinha entre os principais incentivadores de sua carreira.

Em 1968, The Fevers seria a banda do seu programa na TV, e Raul Seixas frequentador assíduo da Discoteca do Chacrinha. Em 1980, o apresentador e o Maluco Beleza promoveram um episódio surrealista. Numa edição da Discoteca, intitulada Ali Babá e os 40 Ladrões, Raul, vestido de árabe, montado num elefante, tumultuou as ruas do Centro de São Paulo, seguido pelas câmeras da TV Bandeirantes. Chacrinha o esperava na porta da emissora.

Endeusado pelos tropicalistas (ele se jactava de ser o criador do tropicalismo), Chacrinha passou a ser alvode estudos e teses. Consagrado como gênio da comunicação, acabou como Doutor Honoris Causa da Universidade da Cidade, no Rio. O que o levou criar um dos seus mais conhecidos bordões: “Quem não se comunica, se trumbica”. Em 1969, Gilberto Gil consagrou definitivamente Chacrinha no samba Aquele Abraço, e deu-lhe um novo epíteto: “Velho Guerreiro”.

Brigado com a TV Globo, ele saiu da emissora em 1972,  Chacrinha passou para outras emissoras, Bandeirantes, TV Tupi, mas acabou voltando à Globo onde ficaria até o final da vida, como campeão de audiência. Em 1988, descobriu que tinha um câncer no pulmão (já lhe acontecera nos anos 40). Seu ultimo programa foi apresentado com o humorista João Kléber

Teve um dos mais concorridos velórios já acontecidos no Rio de Janeiro. Milhares de pessoas foram à Câmara Municipal da cidade, onde o corpo foi velado. 90 homens da tropa de choque não conseguiram impedir o tumulto provocado por pessoas que queriam furar fila. O famoso Russo, que atirava abacaxis e bacalhau para o a plateia do Cassino do Chacrinha, desmaiou amparado pelas chacretes Erika Selvagem, Sandrinha Capeta e Regina Polivalente.  Chacrinha foi sepultado, em 2 de julho de 1988, num jazigo perpétuo, no cemitério São João Batista, em Botafogo, Em Surubim,o prefeito José Arruda decretou luto oficial de três dias.

 
 

TAGS
100 anos Chacrinha
Veja também
últimas
Mais Lidas
Webstory