Dos tempos de Cascabulho até a trajetória solo, o músico e compositor Silvério Pessoa passou por muitos territórios – físicos, culturais, artísticos. Uma das viagens mais recentes do cantor, no entanto, foi por um método diferente: o de pesquisador acadêmico. O fruto dessa grande aventura, como descreve o autor, foi o a dissertação que agora virou livro, intitulado Religiosidade Popular: França e Pernambuco: Diálogos, Expressões e Conexões (Fonte Editorial).
A obra é lançada sábado (3/12), a partir das 15h, na Semana do Livro de Pernambuco, que acontece no Museu do Estado de Pernambuco. Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Católica em Pernambuco, Silvério vai falar no evento da pesquisa sobre as semelhanças e singularidades de Pernambuco com a Occitânia, parte do sul da França.
A cultura occitana chamou atenção de Silvério desde o nascimento do disco de Lenine, O Dia em que Faremos Contato, de 1997. Uma das faixas tinha participação de dois emboladores franceses, que soavam como parte perfeita de um côco. “Quando fui a França, fui procurar os músicos – eles usavam pandeiros pernambucanos. Então, em meus dias de folga das turnês, eu deixava de ser o Silvério músico para me tornar o Silvério pesquisador”, conta.
O encontro com a cultura occitana foi essencial. “Uma das coisas que mais me impressionou foi a religiosidade popular de lá ser parecida com a daqui. No nosso imaginário, a França é laica, e laica de um modo mais veemente do que aqui – proíbe, por exemplo, símbolos religiosos em espaços públicos. O que eu vi, no entanto, no sul da França, foi um povo extremamente religioso e devoto, parecido com Pernambuco. Quis levar isso para o Brasil e para o mestrado”, comenta.
Nos documentários, livros e reportagens que via sobre a França, Silvério não encontrava esse aspecto. “Não via nada sobre a França que exerce a sua religiosidade com peregrinações, com fontes sagradas, com a comemoração – com fogueiras – do São João, com a devoção às relíquias, etc. Foi uma surpresa quando vi isso”, aponta. Ao mesmo tempo, essas semelhanças mostram que a religiosidade dos dois locais possui uma origem em comum, mas não que elas sejam a mesma expressão e formem a mesma cultura.
A cultura occitana, especialmente na música, já era um tema de pesquisa na carreira do autor. A escolha por observar na sua pesquisa a irreligiosidade veio também por um fator pessoal, algo, como ele diz, “incrustado no seu DNA”: a herança religiosa que recebeu da mãe, Ivete Leal Pessoa, devota de Nossa Senhora da Conceição, que o ensinou a rezar desde pequeno. Num dos textos que apresentam o livro, o professor Roberto Motta destaca que um dos diferenciais da abordagem de Silvério é justamente sua capacidade de se encantar pela religiosidade sem perder os critérios.
“Essa pesquisa foi uma grande aventura para mim, isso de exercer uma solidão pelas estradas do sul da França, de uma França que não é a parisiense, não é a do norte, não é a napoleônica. O que vi na Occitânia foi uma herança poética, lírica, uma aventura real. Roberto diz que não acredita em religião sem encantamento, em falar nela sem isso. A magia está dentro da religião, não existe uma crença no mundo sem rituais. Entender isso foi imprescindível para que eu fosse, até certo ponto, emotivo, porque eu não acredito nessa ideia do pesquisador distante. Eu fui me emocionar e, depois, fui me distanciar para interpretar, com teorias e leituras, tudo aquilo”, resume Silvério.
Se essa religiosidade católica e popular intensa são um dos fatores da aproximação cultural entre a Occitânia e Pernambuco, o contexto global – e o significado delas – também é parecido. De uma certa forma, as tradições são uma forma de resistência dentro do panorama da globalização e padronização dos mercados.
“Um dos teóricos importantes para o trabalho foi Axel Honneth, que fala das culturas em busca de reconhecimento. Peguei essa teoria e fui pensá-la diante de um mundo conectado, virtual e concreto. Dentro da fé, existem novos temas, como a ciberreligião, em que é possível acender velas em sites, por exemplo. Diante de tudo isso, essas pessoas ainda saem de casa para fazer novenas, participarem de procissões, partirem em romarias, banhar-se com águas sagradas. Isso transcende o pós-moderno dentro da religião”, comenta. “Sem a religiosidade popular, que independe das instituições, a cultura é manca.”
Atualmente, Silvério está desenvolvendo sua pesquisa de doutorado, novamente dentro do tema da religião. Em Do Altar para o Palco, ele resolveu observar a música católica contemporânea através de um dos seus principais nomes no Brasil: o padre Fábio de Melo. “É uma análise da produção artística dele, um cara midiático, zeloso com a doutrina e contemporâneo. Dá uma teia boa de assuntos para se discutir”, anima-se Silvério.