Raduan Nassar ganha volume com sua obra completa

O escritor do clássico Lavoura Arcaica tem edição com contos inéditos e ensaio
Diogo Guedes
Publicado em 18/12/2016 às 5:07
O escritor do clássico Lavoura Arcaica tem edição com contos inéditos e ensaio Foto: Fotos Públicas/Divulgação


“Sacanagem, inveja, generosidade, amor, violência, ódio, sensualidade, interesse, mesquinhez, bondade, egoísmo, fé, angústia, medo, ambição, ciúme, prepotência, humilhação, insegurança, mentira e por aí afora, mas sobretudo passionalidade, além do eterno espanto com a existência. É este o patrimônio da espécie.” 

Na sua entrevista para os Cadernos de Literatura do Instituto Moreira Salles – uma das raras que aceitou conceder sobre literatura – o escritor Raduan Nassar elencou bem o pano de fundo da sua prosa. Um dos maiores autores do Brasil, ele criou uma literatura das paixões humanas, imperfeitas e sedentas como são. E escreveu enquanto quis escrever: o abandono da literatura e a recusa a fazer parte de qualquer jogo de aparências do mercado editorial são de certa forma o ponto final de sua obra – composta por “um livro e meio”, como brincou em maio deste ano ao saber que tinha ganhado a maior honraria da língua portuguesa, o Prêmio Camões.

Nascido em Pindorama, no interior de São Paulo, em 1931, Raduan é o autor de duas narrativas febris e clássicas da prosa brasileira do século 20: o romance Lavoura Arcaica e a novela Um Copo de Cólera. Possivelmente é aos dois que ele se referia ao falar em um volume e meio – deixou de lado os contos do livro Menina a Caminho. Toda essa obra foi escrita apenas entre as décadas de 1960 e 1970. “Quando fiz minha estreia com o Lavoura, já tinha escrito minha obra completa... Vantagens de quem escreve curto”, já disse. Agora, a Companhia das Letras publica Obra Completa, com a reunião de sua escrita pouca e essencial, com o acréscimo importante de dois contos (ambos de 1958) e um ensaio (1981), reunidos num trecho chamado de “safrinha”. 

EDIÇÃO DISCRETA

O volume tem a força inevitável da prosa de Raduan, mas é excessivamente discreto. Pode ter sido um pedido do autor, não importa: não há nenhum texto crítico e nem material adicional aos textos. A edição é tão quase sem esforço que sequer a organização do volume ou é assinada.

Ainda assim, tanto faz se é a primeira vez ou uma releitura: bater os olhos na narrativa de Lavoura Arcaica, acompanhar o protagonista André que não consegue sair da carne dos seus sentimentos e penetrar na sua família de “fantasmas tão consistentes” é uma das experiências inigualáveis da leitura. Nos textos inéditos, há parte desse encanto. O Velho traz a tensão crescente de um senhor ao longo de uma noite – ele aguarda ou imagina que haverá numa espécie de retaliação contra um morador da sua pensão. Em Monsenhores, o estilo narrativo sem pausas para pontos faz uma nova aparição vertiginosa. O ensaio A Corrente do Esforço Humano mostra que sua filiação, mais do que feita da reverência acrítica à tradição europeia, se preocupa com o que nasce a partir desse esforço coletivo , “sempre comovente quando percebido no seu conjunto”.

Raduan já mostrou que buscou intencionalmente ficar de fora dos debates teóricos e estéticos da literatura da sua geração – das vanguardas, dos modismos, do que mais afirmava egos do que a escrita. O que apreciava no ofício era “mexer com as palavras”: “Não só com a casca delas, mas com a gema também”. É algo dessa gema, algo que está na linguagem e que é mais do que ela, que parece funcionar como o motor do seu abismo. Raduan, que depois abandonou a escrita porque a vida se tornou uma leitura mais interessante do que os livros, tece como poucos uma prosa contaminada desse patrimônio doentio e fascinante da espécie. E é sempre bom voltar a esse “paralelepípedo lírico” que é a literatura de Raduan, como foi descrita pelo próprio autor.

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