Marte é o lugar para quem ainda sonha em dar certo, já que a vida na Terra é cada vez menos vida. Dos humanos, apenas alguns ficaram por aqui, motivados por impedimentos institucionais e decisões profissionais. Um deles é Rick Deckard, dono de uma ovelha elétrica, uma vergonha em uma sociedade em que ser minimamente privilegiado é ter um animal totalmente orgânico, um dos poucos que ainda não estão extintos. Para ter o tão sonhado bicho verdadeiro, Rick tenta fazer um pé-de-meia eliminando ou, como prefere, aposentando humanos falsos. Mas o quão falsos eles realmente são? Aliás, o que é ser verdadeiro?
Esses são fragmentos do universo e das reflexões construídas pelo estadunidense Philip Kindred Dick, há 50 anos, em seu Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?. A obra traçaria rumos para ficção científica dentro da cultura pop, principalmente após sua adaptação para o cinema, ganhando um título considerado mais “sexy”, Blade Runner, dirigida por Ridley Scott, que angariou o status de clássico com o tempo. A partir de então, o autor entrou nos holofotes, com outras obras sendo levadas para o audiovisual. Foi uma verdadeira redescoberta sobre K. Dick, mas o que havia para se descobrir?
Nascido em 1928, o escritor deu seus primeiro passos na literatura ainda jovem, escrevendo para as revistas pulps de ficção científica. Na época de Androides Sonham, já era dono uma extensa lista de romances e contos publicados, além de um prêmio Hugo, considerado o mais importante do mundo sci-fi. Os leitores mais imersos no gênero já tinham uma noção do existencialismo e das lisergias de sua obra.
"Ele é de uma geração mais próximas dos 'beatniks', então temos muita droga e rock n’roll. Philip vivia drogado, colecionava uma série de casamentos arruinados e sucessivas idas e vindas em hospitais psiquiátricos. E, com esses problemas todos, era uma pessoa que escrevia uma ótima ficção-científica atrás da outra”, explica o escritor pernambucano Marcello Trigo, que terá sua admiração pelo escritor canalizada em seu próximo livro, Dimensionauta, que terá K. Dick como um de seus personagens na trama passada em um Recife futurista.
Para Trigo, Androides Sonham, assim como boa parte da bibliografia do autor, traz para o sci-fi questões temáticas que ultrapassam os limiares de apenas um universo fantástico, trazendo abordagens sociais, subjetivistas e metafísicas em diversas esferas. Empatia, memória, religiosidade e consumo, tudo pode ser descortinado nas camadas da trama policial que se aprofunda em uma densa jornada psicológica. É a ficção-científica indo além dos rótulos que a desprezavam como gênero desprovido de seriedade
O escritor e pesquisador da literatura fantástica Bráulio Tavares endossa esse pensamento, ressaltando como os conteúdos da obra encontram consonância no mundo atual. É na descoberta e redescoberta de um sentimento de empatia que o agente Deckard vai se perdendo e se desconstruindo psicologicamente no passar de páginas. Bráulio vê nessa questão empática um importante elemento de como a obra traz certos reflexos da contemporaneidade. "A perda da empatia é um dos principais problemas do mundo atual, no Brasil especialmente. Estamos entrando num momento de absoluto desprezo pela vida alheia, pelo esforço alheio, pela dignidade alheia", comenta Tavares
Entretanto, é preciso do fio condutor da estilística de escrita para fazer essa gama de temáticas e abordagens surgir organicamente. O escritor Ronaldo Bressane, autor do posfácio da edição brasileira de Androides Sonham, lançada pela editora Aleph, ressalta que K. Dick traz um "estilo neutro, gélido, desassombrado, quase um não-estilo, que surge fortíssimo na criação de cenas e nas reflexões metafísicas". Ele afirma que a linguagem adotada tem um maior grau de refino nas questões abstratas e filosóficas, quando comparada à ficção-científica popular, se desapegando da verborrágica terminologia técnica do gênero.
Ainda sobre a escrita, Trigo a considera descompromissada com o academicismo, sob forte influência de sua verve beatnik, devendo a nomes como Jack Kerouac, absorvendo também uma literatura popular dos seus tempos de escritor das revistas pulp, com personagens falando mais humanamente. "É muito comum vermos no K. Dick o narrador pensando no que ele acabou de descrever, chegando ao ponto de misturar bem atmosferas de ambientes com os próprios personagens, com o leitor encarando a mesma descrição para ambos", exemplifica.
O audiovisual já incorporou em suas produções mais de uma dezena de narrativas desse autor, sejam elas contos ou romances, no cinema e na televisão. Mais recentemente, temos as séries The Man in the High Castle, baseado em seu distópico enredo sobre um mundo em que o Eixo vence a Segunda Guerra Mundial e Eletric Dreams, inspirados em uma série de contos. Entretanto, é com Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? que tudo começa, ao ser transformada em Blade Runner em 1982.
Célebre pela sua estética que mixava o cyberpunk com o noir, tudo bem acompanhado pelos sintetizadores da trilha composta pelo grego Vangelis, Blade Runner não foi um sucesso de bilheteria, arrecadando apenas US$ 5 milhões a mais do que seu orçamento de US$ 28 milhões. Com o tempo, a obra foi revisitada, principalmente com relançamentos de cortes com total controle de Ridley Scott, diferente daquele que foi aos cinemas. Hoje, é considerado um marco para o cinema sci-fi e para a cultura pop, voltando os olhos para a obra de PKD.
Adaptar a densidade de Androides Sonham exigiu sacrifícios para que funcionasse bem em outra mídia, a começar por seu protagonista, Rick Deckard. Se o cinema o consolidou como um vigoroso policial, com o porte físico e a fisionomia de Harrison Ford, o Deckard literário é descrito como um "homem mediano, não muito impressionante, de rosto redondo e careca, feições lisas; parecia um balconista em um escritório burocrático, metódico mas informal, sem o porte de um semideus". Nas letras, o agente ainda é casado e tem na figura de sua esposa, chamada Iran, uma convivência conflituosa.
Trigo, Bressane e Tavares concordam com o aspecto religioso da obra. O Mercerismo é um culto encarnado pela figura de Wilbur Mercer, espécie de profeta com o qual os personagens do livro se conectam por meio de um mecanismo batizado de "caixa de empatia", de tal forma que, ao subir em uma colina enquanto pedras são atiradas contra ele, seus seguidores, a ele ligados por meio das tais caixas, saem machucados também. "A religião do Mercerismo é baseada na empatia, na capacidade de alguém se identificar com o sofrimento de outra pessoa. Essa é uma das características mais importantes do pensamento de K. Dick", afirma Tavares. Porém, a escolha de Scott de retirá-la não deve ser vista com maus olhos, pois, ao incluí-la, as chances de resultar em um roteiro confuso poderiam se multiplicar.
Apesar de inicialmente receoso com essas mudanças, chegando a criticar as primeiras versões do roteiro, PKD acabou por apreciar o que foi feito por Scott e sua equipe. Em entrevista, chegou a declarar que ali estava o seu mundo interior, afirmando que o romance e o filme se reforçam mutuamente.
Ironicamente, se 1982 foi o ano em que Blade Runner veio ao mundo, solidificando ainda mais o autor na cultura pop, também foi o ano em que Philip morreu. Não chegou a ver a obra materializada nas telas, vitimado por dois AVCs. Felizmente, sua robusta bibliografia possibilitou que suas excelentes narrativas continuassem a ganhar o mundo.
Ridley Scott |