Para quem está distante historicamente ou culturalmente, a Guerra de Canudos poderia ser vista, na narração de Euclides de Cunha (1866-1909), quase como um evento mítico: definidor, cheio de detalhes, catártico e, claro, trágico. Transformado em um dos maiores textos da língua portuguesa em Os Sertões, no entanto, o massacre de Antonio Conselheiro e seus seguidores é um retrato pesado da formação do Brasil, violenta com os mais pobres, cruel com as dissidências regionais e até falsamente científica nos seus preconceitos. Toda a tensão entre mitologia e realidade de Canudos está no livro de Euclides, autor que é o grande homenageado da Festa Literária de Parati (Flip) deste ano.
O evento começa nesta quarta (10), com a sessão de abertura comandada pela pesquisadora Walnice Nogueira Galvão, especialista na obra de Euclides. A programação, com 21 mesas no total, vai contar com 32 autores e autoras, orbitando pela temática d’Os Sertões, mas também indo bem além dela.
A curadora da edição é a editora Fernanda Diamant, pelo primeiro ano no posto. Segundo ela, essa dualidade do texto da obra-prima de Euclides é um mote para a programação. “Há algo de mítico, também, no relato da violência que define a sobre-humana revolta de Canudos. Mas a tragédia é real e foi testemunhada pelo autor, que, ao escrever o livro, reviu suas convicções e nos levou às raízes, ao fundo arcaico da opressão e da intolerância que ainda alimentam a violência social no país”, escreveu.
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Com um orçamento estimado em R$ 5,4 milhões, mais modesto do que antes da crise, a Flip continua com a capacidade de trazer bons recortes do que tem sido publicado e discutido no mercado brasileiro recentemente, ainda que se sustente cada vez menos na presença de grandes celebridades internacionais da literatura.
A abertura recente do festival tem buscado olhares mais diversos em relação a questões raciais, regionais e de gênero, por exemplo. Em um evento que discute criticamente a mitologia cientificista forjada sobre o Nordeste, apenas três autores da região aparecem na programação, todos em mesas que não passam claramente pelos temas de Euclides: o escritor paraibano Braulio Tavares, a poeta cearense Jarid Arraes e a jornalista e escritora pernambucana Marilene Felinto, autora do premiado romance As Mulheres de Tijucopapo.
A programação internacional traz vários bons convidados, como o escritor e músico angolano Kalaf Epalanga, integrante do grupo Buraka Som Sistema. Ele é autor do romance Também os Brancos Sabem Dançar, sobre um músico que é detido na Escandinávia por tentativa de imigração quando vai fazer um show com sua banda. Da Nigéria, a escritora Ayòbámi Adébáyò vem falar sobre o livro Fique Comigo, sobre o patriarcalismo nigeriano, um casal infértil e a poligamia.
A Flip ainda traz a escritora americana Kristen Roupenian, famosa pelo conto Cat Person, a fotógrafa inglesa Maureen Bisilliat, a escritora canadense Sheila Heti, o premiado quadrinista paulista Marcelo D’Salete, a cantora gaúcha Adriana Calcanhotto, o dramaturgo José Celso Martinez Corrêa e o jornalista americano David Wallace-Wells, entre muitos outros. Como na maioria dos anos, a programação se enriquece nas programações paralelas, com casas de instituições culturais, editoras, grupos independentes e jornais.
DE PERNAMBUCO
No fervilhamento dessas atividades paralelas que tornam Parati uma Meca literária ao longo de cinco dias estão várias atividades com autores pernambucanos. Um dos destaques é a Cepe Editora, que vai lançar obras e projetos durante o festival na Casa Paratodxs.
Um deles envolve Walnice: a nova edição do livro No Calor das Horas. A obra é fundamental para se entender o noticiário da imprensa durante a Guerra de Canudos, com distorções, mentiras, preconceitos e influência abrangente do discurso oficial. Vendo a análise de Walnice, é possível entender porque Os Sertões se tornou o que é: o massacre foi forjado também no discurso, e o livro de Euclides é a primeira reavaliação das ações do estado e da sociedade brasileira na promoção de um massacre.
A Cepe vai levar outros livros, como o belo Vácuos, do poeta e médico moçambicano Mbate Pedro, a ser lançado na sexta, às 19h. A obra, finalista do Prêmio Oceanos 2018, ainda não havia saído no Brasil e traz uma poesia poderosamente lírica, que se revela subjetiva sem se escorar em um tom confessional corriqueiro.
Outro livro a ser lançado na Flip na quinta, às 16h, é o poema vencedor do Prêmio Cepe de Literatura Talvez Precisemos de um Nome para Isso, da escritora e tradutora Stephanie Borges. A obra percorre, através da temática dos cabelos, o histórico de opressões e lutas políticas e individuais. No evento, ela vai conversar com Lima Trindade, autor do romance As Margens do Paraíso, também da Cepe. Ainda pela editora pernambucana, haverá uma mesa, também na quinta, às 19h, sobre o projeto Viagem ao País do Futuro, em que a jornalista portuguesa Isabel Lucas percorre o Brasil através de 12 livros – o resultado será uma obra a sair em 2020.
Já na quinta, às 19h30, dentro do Casarão Santa Rita, na programação do Sesc, o escritor e crítico do JC, José Teles, vai conversar com o jornalista Lauro Lisboa Garcia sobre o primeiro livro da coleção Discos da Música Brasileira. Em Da Lama ao Caos: Que Som É Esse que Vem de Pernambuco, o repórter paraibano conta a história de como foi formado um dos principais discos da música brasileira recente – o volume é repleto de bastidores e curiosidades, narrando de forma envolvente o contexto criativo de Chico Science e da Nação Zumbi.
Ainda sobre Pernambuco, o jornalista e diretor Jefferson Sousa participa da programação do Páginas Reveladas, do jornal O Globo, falando sobre o documentário Leonardo Bastião, O Poeta Analfabeto, que tem circulado por festivais no mundo. A mesa com Raull Santiago e Safira Moreira acontece no sábado, às 16h30, na Casa da Cultura.
Já o presidente da Fundação Joaquim Nabuco, Antonio Campos, vai apresentar em Parati uma nova edição do livro Diálogos no Mundo Contemporâneo, publicado originalmente em 2011. O evento vai acontecer na Casa Gastromar, às 19h30, com a palestra Um Olhar sobre o Contemporâneo na Era da Hipermodernidade.