Quando Machado de Assis publicou, em 1881, Memórias Póstumas de Brás Cubas, o seu quinto romance, construiu para si e para a obra um espaço novo na prosa brasileira. Se já trazia em obras anteriores as contradições e ironias da vida burguesa, entre a aparência dos amores e a realidade dos interesses econômicos e mesquinhos, passava então a dinamitar o território de antes, o dos romances de costumes. Nada da estrutura habitual, nada de formatos gastos. Machado partiu para criar um defunto-autor, que começa a sua história a partir do seu enterro, abraça as digressões e os cortes bruscos, elogia e ironiza o leitor e, ao exaltar os próprios desejos e gestos, revela a própria mesquinhez.
Uma das obras mais editadas da literatura nacional, Memórias Póstumas não é nada difícil de achar. Ainda assim, uma das suas edições mais raras foi publicada há 75 anos pela Sociedade dos Cem Bibliófilos do Brasil, com ilustrações feitas por um dos grandes artistas brasileiros, Candido Portinari.
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A Antofágica, editora que nasceu com o intuito de lançar livros clássicos com ilustrações, publica agora uma nova versão dessa obra. Antes de Machado visto por Portinari, a primeira obra da empresa foi A Metamorfose, de Kafka, com o olhar perturbador de Lourenço Mutarelli. Em Memórias Póstumas, são sete águas-fortes originais e 74 desenhos reproduzidos em clichê.
Em uma carta a Mário de Andrade, Portinari narra: “Já comecei a fazer o Brás Cubas. Fiz o plano e estou executando. Em vez de fazer vinhetas, fiz o retrato de cada personagem; ainda faltam alguns. Já gravei uma placa — gostaria que v. a visse, pois creio que progredi muito. Estou respeitando o texto — tenho estudado indumentária. Os retratos estou procurando dar um jeitão de gente que existiu mesmo”. O resultado pode ser visto na sua interpretação de algumas das cenas mais icônicas do romance, do enterro ao delírio com um hipopótamo.
"Pena da galhofa e tinta da melancolia"
Junto com o texto e as ilustrações, o volume da Antofágica conta com uma apresentação da youtuber literária Isabella Lubrano, um texto do filho de Portinari, João Candido Portinari, e um perfil biográfico feito pelo escritor e pesquisador Ale Santos. Alguns dos artigos são mais introdutórios, destinados a leitores de primeira viagem, mas o ensaio final do crítico e professor Rogério Fernandes dos Santos analisa melhor a singularidade do romance.
O livro escrito com “a pena da galhofa e a tinta da melancolia” continua como uma das narrativas mais maliciosas da literatura. Do “emplasto anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade” ao comentário sobre o amigo que o elogia (“Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei”), é difícil não apreciar também o frescor de uma narrativa que se dirige ao leitor sem cerimônia e tergiversa na trajetória irregular da própria vida.
Rogério aponta para a ruptura do romance. Se Machado já mostrava antes “o capricho do patriarca” e a “dissimulação do subalterno”, é a partir de Memórias Póstumas e a ambiguidade da sua “sinceridade programada” que ele abandona a confortável forma do romance de costumes. “O que parece lhe interessar é o romance com suas possibilidades de despiste e ocultação. Um instrumento comunicativo da experiência moderna”, anota o crítico. O poder do livro é ainda maior: enquanto brinca com a natureza da ficção, revela as máscaras forjadas pelo defunto-autor na sua tentativa de fugir do desespero diante do vazio e do egoísmo.