J. Michiles estava no restaurante Mourisco, no Centro da folia, em Olinda, quando viu, pela janela um começo de um tumulto que não chegou a acontecer: “Uma moça, de repente, deu um bote no cangote de um rapaz e aplicou-lhe uma mordida. Com o susto ele caiu no chão, enquanto ela sumiu no meio da massa. Fiquei com aquilo na cabeça, e na mesma hora comecei a fazer a música”, conta o folião compositor, que completa amanhã 70 anos de idade, 50 de carreira, nem sempre fez frevo.
J. Michiles gravou sua primeira música no Rio de Janeiro: “Cheguei lá no dia 2 de janeiro de 1964, depois de seis dias de viagem. Estava com 19 anos, matuto todo. Fui direto para a Praça Mauá, onde ficava a Rádio Nacional. Assisti ao primeiro programa do ano, vi todos aqueles cantores, Jorge Goulart, Orlando Silva, Jorge Goulart. Quando o programa terminou fui aos bastidores procurar meu tio”. “Roubou uma galinha e foi preso”, foi a resposta que deu o cantor Francisco Carlos, “El Broto”, um dos ultimo ídolos da era do rádio, quando o jovem pernambucano perguntou pelo seu tio. “Ele brincou, mas logo disse que Orlando tinha se apresentado e ido para casa. Ele morava no Méier. Peguei um táxi e o motorista me cobrou cinco mil cruzeiros, pelo cinco vezes mais do que o preço da corrida”, lembra J. Michiles.
Com padrinho tão forte, ele não demorou a ter outra música gravada, desta vez com um grupo vocal, que faria história na Jovem Guarda, os Golden Boys: “Eles gravaram Não quero ver você chorar, que foi o lado B do bolachão de Quero afagar tuas mãos, a versão de I want to hold your hand dos Beatles”, lembra J. Michiles que interrompeu a carreira como compositor no Rio, porque não se adaptou à vida carioca. Voltou para o Recife e chegou à cidade no dia do golpe de 1964. Continuei fazendo música, mas ganhava a vida trabalhando como desenhista. Em 1966, voltei ao Rio, para passear. Neste ano a prefeitura fez o festival Uma Canção para o Recife. Eu achava que tinha perdido o prazo, mas por causa de uma cheia que houve em junho, as inscrições foram prorrogadas”.
Michiles pediu para um maestro amigo de Orlando Dias que passasse a música para o papel. Era o último dia das inscrições: “Eu corri para o aeroporto do Galeão, bem cedinho. Ia tentar encontrar alguém que viesse para o Recife e pedir que entregasse a partitura ao meu irmão. A primeira mulher que abordei, veja que sorte, ia para Campo Grande, onde eu morava. A casa dela ficava numa rua perto da minha casa. Ela saiu do Rio às 8h, num avião da FAB. Chegou ao Recife às duas da tarde. Enfim, minha música foi a última a ser inscrita”.
A música era a marcha Recife manhã de sol, defendida pelo cantor Marcus Aguiar no festival: “Pensei que poderia ficar, no máximo, em terceiro lugar. Concorria com Capiba, parceiro de Ariano Suassuna, Nelson Ferreira, Sebastião Lopes. E ganhei. Depois houve umas polêmicas, acho que foi o parceiro de Nelson Ferreira que foi aos jornais dizer que a música era plágio. Não deu em nada”, conta Michiles. Recife, manhã de sol foi lançada em compacto pela Rozenblit, e desde então recebeu várias gravações. Uma delas de Maria Bethânia.
A vitória no festival fez com que J. Michiles acreditasse mais no seu futuro como compositor. Mas suas músicas só chegaram a sucesso nacional 20 anos depois, quando, em 1986, Alceu Valença gravou Bom demais (Eu tenho mais que tá nessa/ Fazendo mesura na ponta do pé/ Quando o frevo começa/ Ninguém me segura/ Vem ver como é”). No ano seguinte, ele estourou de vez com o frevo Me segura senão eu caio. “Depois desta música os Quatro Cantos, em Olinda, nunca mais foi o mesmo. Virou um dos pontos do Carnaval de Olinda”, diz. “Nos Quatro Cantos cheguei/ e todo mundo chegou/ Nos quatro cantos cheguei/ E todo mundo chegou/ Descendo ladeira/ Fazendo poeira/ Atiçando o calor”, ele emendou cantarolando o frevo-canção.
Depois deste vieram Diabo louro, Roda e avisa (em parceria com Edson Rodrigues) e Queimando a massa, todas cantadas País afora: “Eu quando faço a música, dou tudo de bandeja, faço também a introdução”, mostrou solfejando. “Acho que a introdução é o cartão de visitas do frevo-canção. Uma introdução mal-feita pode acabar a obra”, explica Michiles, que lançou dois novos frevos este ano, Cuecão do mensalão e O bambu vai quebrar.
“O problema é que o rádio não toca mais. Fica sempre nos frevos do passado, sem dar atenção à produção nova. Outro problema é o que eles chamam de Carnaval multicultural. Ora, Pernambuco, tem caboclinho, maracatu, frevo, um monte de manifestações, então já é multicultural. Então trazem nomes que nada tem a ver com Carnaval. É aquela velha coisa. A Bahia sabe como vender seu produtor. A gente prefere o produto de fora”, critica o setentão J. Michiles, que será homenageado pela prefeitura de Olinda, na abertura do Carnaval.