Shows envolvidos por contextos políticos e sociais foram o cenário para o renascimento de um dos grupos mais importantes do Rap recifense. Após um intervalo de dez anos na carreira, o Donas, formado pelas MC’s Fabiana Coelho e Mariana Oliveira, a MJ, voltou à cena com duas apresentações marcantes na cidade: no mês de março, durante a edição do Projeto Terça Negra voltado ao Dia Internacional da Mulher, e em maio, em acampamento realizado na Praça do Derby em favor da democracia nacional. "Foi um marco. Pegar o microfone e falar que não somos coniventes com toda essa corrupção fez aquele momento ser muito forte pra gente", relembra Mariana. Junto ao DJ Charles Mello, a dupla se prepara para continuar uma história interrompida em 2006.
O envolvimento das MC's com o hip hop é antigo, começou ainda na adolescência. Aos 13 anos, MJ ganhou uma fita K7 com gravações de dois grupos importantes do rap nacional, a recifense Faces do Subúrbio e a Câmbio Negro (de Brasília). A menina que não se encaixava no padrão da família de classe média na qual cresceu encontrou nas rodas de rap um lugar seu. O gênero combativo, no entanto, era majoritariamente masculino. "As mulheres iam até as rodas pra paquerar os muitos homens que frequentavam, mas nunca pra se expressar. Fui a primeira em Pernambuco a pegar o microfone e dizer: vim representar vocês", conta a MC.
A história de Fabiana é semelhante, foi desenvolvida nos muitos bailes de hip hop que conheceu através dos amigos do bairro da Madalena, Zona Oeste. Por intermédio de uma amiga em comum, chegou até Mariana com papel e caneta na mão para apresentar seus versos. A harmonia imediata resultou nas primeiras gravações do Donas, mediadas pelo selo In Bolada Records, do Coletivo Êxito de Rua. Juntas, fizeram shows por muitas cidades do Brasil, gravaram um CD demo, homônimo, com oito faixas, e conquistaram a quinta colocação entre cerca de 100 músicas concorrentes do Festival Hutúz. A interrupção na carreira veio pelas demandas pessoais, casamentos e filhos.
"Muitos homens não têm estrutura pra lidar com mulheres artistas. Casei com um desses e acabei me afastando da música. Acontece que o rap não sai da gente", pontua Mariana. De fato, ela e a companheira de palco nunca deixaram a música de lado. Formadas assistente social e admistradora de empresas, respectivamente, Mariana e Fabiana conciliaram os estudos nas profissões tradicionais com as rimas sempre afiadas. Foi essa inquietação inerente a entra no rap que encaminhou o retorno.
A agenda de shows da dupla está crescendo. No dia 10 de julho elas marcam presença no Festival Todo Poder a Elas, que acontecerá no Museu da Abolição, bairro da Madalena. Estão na rota de apresentações até o fim de 2016, além do Recife, Brasília, Rio de Janeiro e João Pessoa. “Também estamos ensaiando e compondo para iniciar a gravação do novo trabalho”, adianta Fabiana. O novo registro, conta ela, virá de forma independente quanto à gravadoras, mas com suporte dos parceiros de cena. “Essa troca de conhecimento, de apoio, é fundamental para o crescimento da comunidade. Não podemos esperar pelas grandes mídias, temos de andar com nossas pernas”.
Além da música, a missão do Donas continua sendo o fortalecimento feminino, dando o apoio necessário as mulheres que chegam até elas. Recentemente, foram convidadas pela Delegacia do Alto do Pascoal para desenvolver letras que abordem a violência contra a mulher. A intenção é que as vítimas ou testemunhas de agressões encontrem na arte um incentivo para saírem da situação de risco.
O convite inspirou a ideia de produzir um disco todo inspirado em temas como superação e conquistas. O conceito de sororidade, definido como o apoio a mulheres vindo de mulheres, será o mote do trabalho. "A missão do rap no Brasil é continuar fora do palco o que se canta em cima ele. O gênero começou aqui falando dos problemas do gueto, então não adianta citá-los e não combatê-los", finaliza Mariana.
SOCIAL
O compromisso com o que acontece ao redor é assumido também pelo DJ Charles, comandante das pickups do Donas. Contemporâneo da turma que embarcou no movimento Hip Hop pernambucano nos anos 1990, ele passou a aliar música e ação social a partir de um episódio acontecido em 1998, no bairro de Nova Descoberta.
Devido a fortes chuvas, a comunidade acabou atingida por uma queda de barreira que desabrigou várias pessoas. Junto a amigos do movimento, Charlles promoveu uma evento beneficente para arrecadar doações em prol dos moradores. Atualmente, o DJ ajuda a manter, junto a Josias Luiz, Darana Costa e Valmir Nascimento, o Movimento Eco Cultural, sediado numa casa do bairro Alto Santa Terezinha. O intuito é manter atividades que atendam às demandas sociais e culturais da comunidade.
Entre os projetos encabeçados está a rádio A Voz do Alto do Pascoal, ainda em desenvolvimento, e o Festival Bola na Mente. Este último acontece há cerca de cinco anos com o propósito de resgatar a cultura local do bairro, promovendo a autoestima dos moradores através de atividades culturais e incentivo ao pensamento ambiental e sustentável. Oficinas de grafite, rima e discotecagem estão na programação do evento, que em acesso gratuito.
O Movimento também administra um estúdio, onde acontecem aulas, oficinas e ensaios dos músicos da região. O local está passando por reformas, mas continua de portas abertas, inclusive para quem puder colaborar com a melhoria da estrutura. O contato pode ser feito através da página facebook.com/DJCharlesMello e do e-mail djcharlesmello@gmail.com.
MULHERES COM VOZ
A cena de mulheres que põem vida e alma no Rap não é exclusividade de Pernambuco. De uma ponta a outra do Brasil, MC’s fortalecem o espaço feminino no segmento, cada uma a sua maneira. Grande referência para a música do Donas, Vera Verônika, MC de Brasília, está na estrada desde 1992, motivada pela vontade de cantar contra as opressões que vivenciou sendo mulher, negra e moradora de periferia.
“O rap é pra mim um veículo de transformação. Foi ele que me proporcionou dialogar com a periferia e ser porta voz desse espaço”, afirma ela, que também é educadora. Vera reforça o caráter combativo da música diante das injustiças sociais: genocídio da juventude negra e a violência contra a mulher estão nas letras dela e das companheiras de ritmo. “Eu e tantas outras mulheres pioneiras no Hip Hop temos tentado mudar, a partir de nossas cidades, nossos estados, a realidade da mulher dentro do movimento”. Em comemoração pelos 25 anos de carreira, ela prepara um DVD com participação de homens e mulheres que têm acompanhado sua trajetória de música e militância.
No sudeste, a carioca Taz Mureb conduz a estrada de quase dez anos iniciada nas batalhas de rima. O bom manejo com as palavras ela herdou da família, que lhe apresentou, quando ainda criança, o repente, famosa cantoria nordestina semelhante ao Rap pela combinação rápida de versos feita no improviso.
Idealizadora da Liga Feminina de MCs e do Coletivo Rap Di Mina, ela põe nas letras questionamentos políticos e sociais que já serviram como objeto de estudo de diversos trabalhos acadêmicos. “Estudo sobre a política do meu país e do mundo para passar conhecimento através das minhas letras. Misturar arte e educação, essa é a minha cara”, destrincha.
Em São Paulo, nomes como Lurdez da Luz são destaque. Mãe de Pérola Rosa, nascida há menos de um mês, ela fez da gravidez um momento para estar em comunhão com uma feminilidade latente, numa nova fase de sua vida pessoal e artística. Inspirada pela gestação, Lurdez lançou uma campanha para financiamento coletivo de seu próximo EP, Bem Vinda. O registro promete vir cheio de reivindicações por liberdade e autonomia para todas as mulheres.
De Karol Conka, em Curitibam passando por Bárbara Sweet, em Minas Gerais, a Flora Matos, em Brasília, o hip hop feminino segue muito bem representado por mulheres que sabem bem o que querem e para onde vão.