TRADIÇÃO

Bongar celebra a ancestralidade da jurema em 'Samba de Gira'

Produzido por Beto Villares, novo álbum do grupo oriundo da Nação Xambá tem pontos da jurema cantados por entidades

GGabriel Albuquerque
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GGabriel Albuquerque
Publicado em 11/09/2016 às 9:00
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Produzido por Beto Villares, novo álbum do grupo oriundo da Nação Xambá tem pontos da jurema cantados por entidades - FOTO: Foto: Divulgação
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No universo da jurema (culto afro-indígena presente em diversos terreiros do Nordeste), a Gira é a reunião dos mestres, mestras, caboclos e outras entidades, tendo o canto como elemento principal da celebração. “É o encontro de dois mundos: o espiritual e o carnal, mediado por elementos da natureza e pela música”, conta Guitinho, vocalista e compositor do grupo Bongar.

Cria da Nação Xambá, do quilombo urbano Portão de Gelo, em Olinda, o Bongar sempre teve uma relação íntima com o culto aos orixás. O cantor lembra: “quando criei a banda, em 2001, a base do nosso repertório musical era dos cantos da jurema e do coco”. Contudo, em Samba de Gira, seu novo álbum, essa conexão ganha mais força e é apresentada como um projeto denso.

Samba de Gira é, desde o primeiro instante, um projeto grandioso – e talvez um dos mais ousados da música brasileira recente. “Na minha concepção do disco, teria que ter três paisagens sonoras: o teatro, o estúdio e o próprio terreiro”, explica. “Eu queria conectar dois mundos com os quais convivemos diariamente na Xambá, tendo a música tradicional como o fio condutor, nos mostrando o quanto, ao conectarmos nossa espiritualidade, somos capazes de revelar uma criatividade em parceria com o legado cultural que herdamos dos nossos ancestrais”.

Para conduzir essa aventura sonora, Guitinho convocou o renomado produtor musical paulista Beto Villares. “Tinha que ser alguém capaz de entender todo o conceito. Precisava de um cara sensível e paciente”, afirma o vocalista. “Mas vendo o currículo dele (trabalhos com Céu, Zélia Duncan, Rodrigo Campos e trilhas sonoras como Xingu), eu pensava que não ia caber no nosso orçamento. Só que ele acabou fazendo um preço mais barato. Não vou nem dizer quanto foi porque seria até desonesto, mas deve ter sido umas dez vezes abaixo do valor dele”, conta rindo.

A gravação principal foi feita no Teatro Hermilo Borba Filho, durante cinco dias, com engenharia de som do produtor pernambucano Buguinha Dub e coprodução de Juliano Holanda. “O Hermilo tem uma sonoridade de espaço grande, mas com certa suavidade, acho que pelas grandes paredes de tijolo e pelo piso de madeira, não tão reflexiva para o som. Eu adorei o som da reverberação do lugar e captamos isso com certo exagero, para depois dosarmos no mix”, escreve Beto Villares no encarte do CD. Posteriormente, foram feitas algumas sessões complementares (vocais, guitarras) no estúdio Carranca, em Recife, e no próprio estúdio de Villares, em São Paulo.

Antes disso, foram feitas gravações de pontos tradicionais da jurema, cantados pelas próprias entidades e mestres no momento em que elas aconteceram durante os rituais, nos terreiros de Dona Marinalva e Xambá. “A gente não queria criar um ritual só para a gravação. Precisava acompanhar a agenda religiosa da comunidade. Foi muito tempo de diálogo com as entidades e mestres. Alguns mestres aceitavam participar, mas a entidade que ele recebe não queria. E ainda tinha o risco de não cantarem o ponto - mas tivemos sorte e todas as gravações deram certo”, explica Guitinho.

Iniciado em 2013, o trabalho foi longo e delicado. “Quando alguém morre, tem um período de resguarde e não tem reza por alguns meses. E no período em que estávamos gravando, tiveram duas mortes”, diz justificando o longo tempo de produção.

Guitinho conta ainda que a inspiração para esse formato veio de um encontro com a entidade Zé Mulequinho, que a sua avó Luiza recebia (hoje é recebido pela sua tia): “Ele mandou me chamar para cantar um coco e pediu Chão Batido, Coco Pisado, do Bongar. Hoje as entidades estão cantando essas músicas da gente. Teve até uma nação de São Paulo que entrou em contato comigo pedindo para gravar Boca da Mata em um CD deles e disseram que usavam essa música nos rituais dele. Tudo isso me deixa muito feliz, mas ao mesmo tempo me assusta quando vou no rito aqui da minha família e cantam uma música minha”.

E se a gira é o momento em que a casa se abre para visitantes, o Bongar faz a mesma coisa em seu Samba de Gira. Além dos mestres, mestras e entidades e do já citado Beto Villares, o Bongar conta com participações dos quilates de Siba (em Vento Corredor), Maciel Salú (Na Boca da Mata), Adiel Luna e Sapopemba (Bananeira Chorou), Juçara Marçal (Moça), Lirinha (Mulungum), Chico César e Jam da Silva (Candeeiro de Palha), entre outros.

“Todo esse processo foi muito rico e revela a capacidade da juventude de terreiro em criar uma música tradicional contemporânea”, reflete Guitinho. “A tradição não é estática, ela se ressignifica com o passar do tempo. Há talvez uma renovação do repertório do terreiro. É algo que pulsa numa comunidade tradicional. Sob o viés artístico, isso é ressignificar sem corromper”, arremata.

OGUM

Samba de Gira mal foi lançado e o Bongar já prepara um novo disco. Aprovado este ano no edital Rumos, do Itaú Cultural, o álbum Ogum será lançado no dia 29 de abril do próximo ano. As gravações acontecem em novembro, no estúdio Cachuera, em São Paulo, com o maestro Letieres Leite, da Orquestra Rumpillez, referência da música de tradição afro-brasileira.

Antes disso, em outubro, Letieres fará uma residência artística e realizará uma oficina para a comunidade na Xambá, no Centro Cultural Grupo Bongar.

Este centro foi entregue no final de fevereiro pela secretaria executiva de Projetos Especiais da Secretaria das Cidades (Secid) à comunidade local. O espaço oferece atividades sócio-educativas diversas (incluindo cursos de empreendedorismo musical, aulas de educação musical, história e até inglês). Contudo, Guitinho afirma que há um descaso do Governo do Estado para com o Centro.

“O governo entregou o espaço sem nenhuma isenção de imposto. As condições de manutenção não são dadas. Quando uma empresa como a Fiat vem pra cá, ou mesmo uma igreja é construída, se dá um milhão de isenção. E nós aqui não temos nada. Estamos sustentado tudo por nós mesmos e com ajuda de amigos, sem o auxílio do Estado”, critica. 

E ele continua, apontando um problema estrutural: “A política cultural do estado é toda pautada na ditadura dos editais. Eu entendo que o edital deve ser uma ferramenta da política cultujuliaral, mas não é pra ser o norteador. Uma política pública de cultura não deve abraçar somente aquelas pessoas que se inscreveram no edital. Isso acaba deslegitimando os grupos populares”, finaliza.

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