Que reação teriam os fãs se Chico Buarque, de repente, aderisse a alguma igreja evangélica ou a uma vertente qualquer do cristianismo, e, daí em diante, passasse a gravar canções louvando ao Senhor, deixasse no passado seu consagrado repertório de músicas seculares? Comprariam os discos que lançasse nesta nova linha, iriam aos seus shows? Provavelmente não, como aconteceu com Bob Dylan, no final dos anos 1970.
No final da década, ele se assumiu cristão e passou a cantar sua produção religiosa, concedendo entrevistas para reafirmar sua crença e gravando álbuns para difundi-la. Assim como provavelmente aconteceria com Chico Buarque, foi nessa época em que a carreira de Dylan teve menor acolhida por parte de público e crítica. A repulsa dos admiradores lembra a dos que o queriam acústico e o repudiaram quando ele se plugou no festival folk de Newport em 1965.
A fase cristã de Dylan teve a duração de apenas três álbuns, Slow Train Coming (1979), Saved (1980) e Shot of Love (1981), dois anos em que ele clamou no deserto. A imprensa desinteressou-se pelos seus concertos, os fãs não queriam vê-lo. Não aconteceu apenas nos Estados Unidos. Oito concertos agendados na Inglaterra, em 1981, tiveram pequenas plateias. Três anos antes, os fãs ingleses passaram até 72 horas na fila a fim de comprar ingressos para assistir a Bob Dylan no Earl Court.
A maior constatação de que o Dylan convertido não interessava aos fãs: quase não existem LPs bootlegs desta fase, e logo do artista mais pirateado da história do rock. Perto de completar quatro décadas, a música da fase cristã de Dylan é reunida na Bob Dylan – Trouble no More: The Bootleg Series, Vol.13 1979/1981 (Columbia/Legacy). No formato mais completo, são oito CDs e um DVD, com a música destes três curtos e constrangedores anos.
Paradoxalmente o mais documentado de Bob Dylan. Em 1978, ele montou estúdio com equipamento de última geração. Foram registrados não apenas shows como também gravação de demos, ensaios e passagem de som. Assim a turnê menos concorrida de Bob Dylan foi a mais bem documentada, pelo menos em termos de qualidade sonora e de imagens. Slow Train Coming, a primeira de suas canções cristãs foi registrada desde o primeiro ensaio, até as diversas versões tocadas nos EUA e Europa.
Documentada até nos protestos dos fãs. Uma das faixas tem um trecho gravado de uma rádio em Portland, Oregon. Um rapaz esbraveja: “Eu vim ouvir Bob Dylan cantar rock and roll, não música gospel. Se fosse pra escutar isso teria ido a uma igreja”.
A CRUZ
Durante um concerto em 18 de novembro de 1978, em San Diego, Dylan sentia-se mal. Mesmo assim encarou a plateia. Perto do final do show, atiraram um objeto no palco. Dylan aproximou-se do objeto, um crucifixo pequeno, prateado e ele o pegou, colocou no bolso e o levou consigo para a próxima cidade, no interior do Arizona, onde se sentia ainda pior. Lembrou-se do crucifixo e o pendurou no pescoço. Foi quando ouviu vozes. Numa entrevista em 1980, ele revelou ao Robert Wilburn, do L.A. Times :
“Havia uma presença no quarto que não poderia ser ninguém, a não ser Jesus. Eu realmente tive uma experiência de renascer em Cristo, pode definir assim se quiser”. Até 1981, os concertos de Bob Dylan eram comparados aos dos pastores evangélicos, que faziam a fama em programa de TV transmitidos em vários países do mundo.
Mas Dylan não era um pastor nem se arvorava a isso. Cantava o que acreditava, e sua verdade naquele momento era aquela. Para quem o seguida desde os primeiros discos, o homem que a sua geração considerava um espécie de profeta, apontando para onde o vento soprava, abandonou tudo para seguir outro profeta.
Ele teria visto a luz pelos olhos de Mary Alice Artes, uma atriz com quem circulava desde 1977, e creditada como Queen Bee, no álbum Street Legal (em que há os primeiros indícios da conversão Dylan). Mary Alice o fez entrar em contato com a Vineyard Fellowship, uma pequena seita evangélica, não fundamentalista, que ele passou a frequentar. É difícil acreditar, mas Bob Dylan acordava-se cedo para ir à igreja as aulas sobre a bíblia, conciliando-as com as constantes viagens.
Este curto capítulo, numa carreira de 55 anos, é contado no livro Trouble in Mind – Bob Dylan’s Gospel Year – What Really Hapenned, de Clinton Heylin, cuja aterrissagem nas livrarias coincide com a caixa Trouble no More, que contém a música cristã de Dylan em diversos formatos, do álbum duplo simples, à edição deluxe, com oito CDs e um DVD. São 102 faixas, 14 delas inéditas.
Enquanto a obra de Dylan tornou-se canônica, com o arremate de um inédito Prêmio Nobel a um roqueiro, a fase gospel carecia de uma análise imparcial, anos depois da surpreendente conversão do artista. Sem o preconceito, as músicas ganham outra conotação. Tome-se como exemplo, Saved, um gospel, que podia ser confundido com uma canção de um repertório de um culto evangélico (o álbum homônimo tem a pior capa de um disco de Dylan e da história do rock).
Poderia, se não fosse cantada e composta por Dylan, que soa com uma força de quem quer convencer e também converter a plateia. Um destaque nessas gravações é a guitarra de Fred Tackett, numa das melhores bandas com que ele já tocou (Jim Keltner é o baterista, Tim Drummond o baixista, e Terry Young no piano). Na inédita Jesus is the One (Jesus é o Cara) Tackett está impagável, talvez porque esta canção, composta na estrada, era modificada cada vez que era cantada no palco.
Ao vivo as canções ganham peso. A guitarra no disco Slow Train Coming é do então novato Mark Knopfler, ao vivo a música é encorpada pela banda e o backing vocal gospel que esteve com ele durante toda a turnê. Nos primeiros ensaios há também um naipe de metais. Dylan mantém o hábito de improvisar em cima da melodia, mas sem torná-las irreconhecíveis.
Feito um músico e jazz, ele reinventa a música, Gotta Serve Somebody aparece aqui em cinco versões, todas diferentes (uma delas com metais). Mesmo com todo proselitismo, as pregações, são bonitas as canções. Claro, 102 faixas é uma dose paquidérmica, que apenas estudiosos da obra de Bob Dylan, ou fanáticos, encaram de uma só tacada. Mas ouça-se Yonder Comes Sin, um rock à Rolling Stones, ou a cultuada Making a Liar Out of Me, até então só conhecida de discos piratas de má qualidade sonora. Aos poucos, constata-se que o diabo não era tão feio quanto pintaram os críticos da época nas resenhas que escreveram sobre cada um desses álbuns.