Clássico

'Like a Prayer': 30 anos depois, obra-prima de Madonna mantém-se intrigante

Contestador, trabalho significou a ruptura de Madonna com instituições patriarcais

Márcio Bastos
Cadastrado por
Márcio Bastos
Publicado em 17/03/2019 às 9:00
Reprodução
Contestador, trabalho significou a ruptura de Madonna com instituições patriarcais - FOTO: Reprodução
Leitura:

Com Like a Prayer, seu quarto álbum, lançado em 1989, Madonna estava pronta para se confessar. Nascida em uma família católica e cercada pelo sentimento de culpa e pecado que marca a religião, ela confrontou as instituições pelas quais era oprimida, não coincidentemente representadas por figuras masculinas: religião (Deus), família (seu pai) e casamento/amor (Sean Penn, de quem tinha se divorciado em janeiro daquele ano). O disco marcou uma ruptura também com a imagem juvenil que fez dela o maior ícone do pop até então e abriu espaço para a consolidação de temas que permeariam seus trabalhos nas décadas seguintes.

A dominação mundial Madonna almejava quando lançou, em 1983, seu primeiro disco já era uma realidade poucos anos depois, com milhões de álbuns vendidos e reverência de jovens que queriam copiar seu estilo e força. No entanto, a crítica (majoritariamente formada por homens) ainda a via com um certo desdém, como um produto de massa sem consistência. Com Like a Prayer, Madonna provou (não que precisasse) que seu projeto artístico era ambicioso, criativo e arriscado.
O disco sucedia True Blue, álbum influenciado pela paixão por Sean Penn, produziu hits como Papa Don’t Preach, La Isla Bonita e

Open Your Heart e se tornou seu mais vendido, com cerca de 25 milhões de cópias comercializadas. Madonna poderia ter repetido a fórmula do sucesso, mas sua capacidade de se reinventar e desafiar fizeram com que ela desenvolvesse um trabalho denso, no qual revela vulnerabilidades e dores muito íntimas.

O momento parecia particularmente propício para a imersão nos cantos mais sombrios de suas emoções: o relacionamento abusivo com Penn chegou ao fim e ela aos 30 anos, idade com que sua mãe morreu, fato que marcou sua infância e moldou sua vida adulta.

“É o disco mais confessional dela até então e também mais ousado musicalmente. É a ruptura dela com um determinado status quo, com a família, com a religião, e abre espaço para a consolidação de uma identidade que ela já tateava, dessas contradições entre seus impulsos de libertação e essas forças que a oprimiam. É o catalisador de imagens que ela vai processar e trabalhar até hoje e o fato dela ter feito isso nos anos 1980, de se opor a uma instituição como a Igreja, foi muito importante”, reflete o jornalista e crítico cultural Talles Colatino.

Imagem e música, no caso de Madonna, estiveram sempre ligados. Junto a Michael Jackson, ela foi responsável por consolidar os videoclipes enquanto obras de arte e narrativas que complementavam a canção. Tome-se como exemplo a faixa-título. O instrumental, puxado por um solo de guitarra, evoca a música gospel e fala de um amor tão avassaladora que se assemelharia ao êxtase religioso. Nesse caso, Deus seria uma espécie de paixão platônica, como se ela fosse uma Santa Teresa de Ávila moderna.

No clipe, Madonna dança em frente a cruzes em chamas e beija um Jesus negro. Controversa, a obra foi boicotada por grupos religiosos e condenada pelo Vaticano, mas também abriu espaço para a discussões profundas sobre raça, gênero e sexualidade.

A política de gênero também é trazida com ênfase em Express Yourself, na qual Madonna incentiva as mulheres (e os gays, que formam grande parte de seu público) a levantarem suas vozes e clamarem por relacionamentos horizontais, quebrando a dinâmica de poder do patriarcado.

Love Song, ótima parceria com Prince, é outro ponto fora da curva do disco e reforça o ímpeto de Madonna em se arriscar. O dueto a coloca em diálogo com outro ícone da época e a interação entre eles causa um estranhamento positivo, uma sensualidade de certa forma até contida, em se tratando de ambos.

POLÍTICA

Em Spanish Eyes retoma o diálogo de Madonna com a música latina e aborda a devastação causada pela epidemia da AIDS, então um grande tabu e que tinha entre suas maiores vítimas as pessoas LGBT. Desde cedo uma aliada da comunidade – em uma época em que isso não comum – ela usou sua plataforma para discutir o assunto e colocou nos encartes do disco instruções de prevenção à infecção.

O casamento abusivo com Sean Penn é tema de Til Death do Us Part, um exemplo da força de Madonna como compositora. Ela conta com um misto de resiliência e desespero, capturando a natureza destrutiva daquela paixão. Outra relação conturbada, a com o pai, é abordada na balada Oh Father, em que ela reconhece os danos emocionais que a falta de comunicação causou na sua infância. Essa constelação familiar é trabalhada ainda em Promise to Try, quando fala diretamente sobre a ausência da mãe com sua criança órfã que, de alguma forma, nunca a abandonou.

Esse diálogo com a infância aparece de uma forma esperançosa em Dear Jessie, uma espécie de canção de ninar inspirada na filha do produtor Patrick Leonard, com quem Madonna trabalhou no álbum. Cherish é outro momento de leveza no disco, que captura a promessa de alegria de uma paixão em seu auge.

“Talvez o que tenha de amor no disco é a procura desesperada por ele. A religião promete que você vai ser aceito e acolhido, mas isto também é negado. Outras pessoas que disseram que iriam acolhê-la, não conseguiram cumprir, então fica essa impressão de uma tentativa de entender onde se encontra esse êxtase e a aceitação”, reforça Talles Colatino.

Ao abordar temas espinhosos, complexos, de forma direta e corajosa, Madonna, mais uma vez, transformou o pop e deu início a uma nova fase em sua carreira, explorando mais profundamente as questões sexuais. Levantou também discussões necessárias e, por isso, pagou um preço, com escrutínio público. Mas, acima de tudo, criou uma obra-prima que, trinta anos depois, ainda ressoa e impacta.

Últimas notícias