Ao pesquisar sobre a vida de mulheres negras em Pernambuco, Estado onde mora há 35 anos, a pesquisadora carioca Clarice Hoffman topou com uma informação que dizia respeito a um membro de sua família entre os prontuários pesquisados no Dops/PE - o temido Departamento de Ordem Política e Social, extinto em 1983. Clarice ficou sabendo que sua avó, a atriz Gusta Gamer, fora fichada pela polícia durante a ditadura Vargas, uma entre as 403 fichas que analisou de artistas de diversas nacionalidades - homens e mulheres - perseguidos por terem pisado no Recife, entre 1934 e 1958, na condição de artistas.
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O levantamento de Clarice Hoffman sobre o Recife da era Vargas acabou virando um catálogo, lançado em junho pelo Itaú Cultural, e já está disponível no site https://obscurofichario.com.br. Como indica o nome do projeto, o Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos revela muito sobre os mecanismos de uma sociedade como a brasileira, que rejeita o diferente, mas flerta com a alteridade.
Foi uma sorte ter uma avó fichada no Dops, pois, de outro modo, lembra a pesquisadora, ela não teria acesso aos prontuários dos feios, mundanos e desajustados artistas que bateram perna no Recife nas décadas de 1930 e 1950, entre eles artistas de circo, bailarinas de salão, transformistas, dançarinos russos, ilusionistas e cantores.
"Eu era produtora cultural quando iniciei a pesquisa, em 2004", conta Clarice. "Não tinha, então, experiência como pesquisadora, mas aquilo ficou na minha cabeça e, quando a Comissão da Verdade começou a atuar, em 2011, ficou mais fácil vasculhar esses arquivos." Ela passou três meses tentando entender o significado daquela montanha de fotos, prontuários e cartazes promocionais que incluíam desde uma apresentação de Aurora Lincheta - o "Turbilhão Cubano que Canta" - aos truques do faquir hipnotizador Tahra Bey, visto pela polícia com um charlatão, capaz de esconder algum segredo político ao induzir populares ao sono letárgico.
O Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos é um projeto cultural que vai além de um levantamento curioso sobre a cena underground do Recife e o projeto paranoico do Dops pernambucano, que desconfiava de tudo o que não era espelho, de trapezistas de circo a anões vestidos com ternos dois números maiores. Foi lendo o ensaio A Invenção do Nordeste, do historiador Durval Muniz de Albuquerque Junior (também disponível no site obscurofichario), que a pesquisadora Clarice Hoffmann descobriu uma nova cartografia recifense capaz de criar novas narrativas urbanas e desmontar o imaginário de um Nordeste rural.
Pelo levantamento da pesquisadora no arquivo de fichas e prontuários, que agregam desde documentos políticos apreendidos a atas de reunião, passando por panfletos, Recife era a cidade das conspirações, de comunistas perigosos. "Quando li o livro de Durval, me dei conta de que essa cartografia underground era uma ‘cena omitida’ que precisava resgatar, o que me levou a inscrever o projeto no Itaú Cultural."
Esse projeto cresceu. De novembro do ano passado a este mês, Clarice convocou artistas, coletivos e grupos interessados em retrabalhar essas informações. Saíram dessa seleção três projetos, sendo o primeiro um vídeo, Vaga de Irma Brown, de Francisco Baccaro e Moacyr Campelo (de Pernambuco), que explora o mapeamento dos espaços recifenses fichados pelo Dops (que também fiscalizava bares suspeitos). Um segundo projeto, da carioca Juliana Borzino, examina a relação da livraria de seu bisavô, em Recife, com os intelectuais frequentadores fichados pelo Dops. O terceiro, da pernambucana Marie Carangi, é uma performance/vídeo que evoca o corpo dos artistas perseguidos.
De todos os personagens que circularam pela Recife antiga, a pesquisadora Clarice Hoffmann destaca a do faquir Tahra Bey, ou Krikor Tahra Kalfayan. "Várias pessoas se fizeram passar por ele, que ficou popular e virou tema de um bloco de carnaval." Sua identidade verdadeira: só o Dops sabia.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.