Uma exposição de arte encerrada mais cedo pelo próprio banco patrocinador e uma peça de teatro que mostrava um Cristo transgênero trouxeram de volta a discussão sobre a censura no Brasil. A repercussão desses e outros casos nas redes sociais e fora delas, por sua vez, levanta questões acerca de temas como o preconceito e a intolerância, presentes no debate global. Para o professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos em Filosofia Política e Ética (Nefipe/UFPE), Filipe Campello, o caso do Queermuseum deixou patente os problemas de submissão da arte ao crivo discutível da recepção. “A crítica e o dissenso na recepção sempre existirão, mas de forma alguma deveriam ser os balizadores morais de uma exposição”, pondera nesta entrevista ao JC. Filipe é doutor em Filosofia pela Universidade de Frankfurt (2013) e também participou projetos de pesquisa no Instituto de Pesquisas Sociais em Frankfurt. Realizou o pós-doutorado na New School for Social Research, em Nova York (Fulbright Scholar) e trabalha em um livro sobre política e afetos, também assunto da conversa que segue.
JORNAL DO COMMERCIO – Os recentes episódios envolvendo a exposição Queermuseum em Porto Alegre e a peça de teatro O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, em Jundiaí, configuram indícios de um ambiente social onde pode surgir a censura à arte?
FILIPE CAMPELLO – A arte tem que permanecer livre para criticar e inquietar, assim como o indivíduo também é livre para se manifestar a respeito dela. Gostar ou não, querer ver ou não as obras são opções que concernem eminentemente ao âmbito privado. A arte pode e deve ser livre para exercer o seu papel de provocação, questionamento – de ser política no seu sentido lato – assim como o indivíduo pode e deve ser livre para gostar ou não e manifestar sua opinião. A manifestação pública de repúdio, por sua vez, tem sua intersecção com a esfera pública, mas isso também deve, ao meu ver, ser garantido. E isso vale inclusive para o boicote, que é uma forma legítima de expressar divergências. Já constranger ou impedir outros espectadores de visitar a exposição entra em choque com a liberdade de escolha de outros indivíduos.
JC – O que caracterizaria a censura?
CAMPELLO – A rigor, censura é fundamentalmente um mecanismo de Estado, mas que pode tangenciar alguns casos no âmbito privado. A decisão pelo fechamento da exposição foi do próprio Santander, e isso tem mais a ver com os riscos do banco perder milhares de correntistas do que com qualquer outra coisa. Por isso, a comparação desse episódio com regimes como Arábia Saudita ou China é descabida. Manifestar opiniões contrárias está dentro do exercício da liberdade de expressão. O problema é mais intricado quando se trata da liberdade para manifestar-se (veja, manifestar, e não proibir) a favor do fechamento da exposição – já que interferiria na liberdade de outros em visitá-la.
JC – Onde encontrar a raiz dessa postura contra a exibição de um ponto de vista e a liberdade dos outros?
FILIPE – O motivo do fechamento da exposição é sobretudo da ordem da relação entre arte e mercado, e nisso não há nada novo. Da parte das reações e dos boicotes, houve, de fato, uma motivação fundamentalmente moral, e que pode ser discutida. Contudo, da parte da decisão do Santander, ceder a essa pressão envolveu também uma preocupação com a imagem e com seus clientes (era impressionante o número de comentários que vi de correntistas, inclusive pessoas jurídicas, dizendo que no dia seguinte iriam fechar a conta do banco). Desde a sua concepção, e o fato de ser aprovado e de ter captado o recurso, não havia esse embate moral. Os comentários do curador e da produção antes dos protestos deixaram claro que o objetivo era trazer uma reflexão na sociedade. Como explicar que tudo isso ceda justamente quando objetivo é atingido? Para mim, é esperar demais que a moral tenha essa força quando se trata de um banco.
JC – O que o caso do Queermuseum mostra?
FILIPE -Mostra os sérios problemas de submeter a arte a esse crivo discutível da recepção. A crítica e o dissenso na recepção sempre existirão, mas de forma alguma deveriam ser os balizadores morais de uma exposição. A decisão do Santander foi uma postura cínica de autocensura. Um outro problema, ao meu ver mais delicado, refere-se não tanto às críticas de aspectos morais, mas na observância do princípio de tolerância religiosa – como no uso de símbolos considerados sagrados para um determinado grupo. A liberdade de expressão é indissociável daquilo que Rawls chamou de “pluralismo razoável”, em que a diversidade e o respeito às escolhas pessoais, religiosas ou não, devem ser democraticamente asseguradas.
JC – É possível estabelecer coincidências e correlações a respeito do espírito do tempo no Brasil dos, digamos, censuristas, e nos Estados Unidos dos supremacistas brancos? E de modo mais amplo, a um movimento de intolerância global?
FILIPE – Do ponto de vista da filosofia política, o que esses exemplos demonstram é uma tensão recorrente entre dois princípios básicos, o da liberdade de expressão e o da tolerância. Como tentativas de diagnóstico, entendo que há narrativas que são implícitas e que pertencem ao que podemos chamar de gramática moral, ou seja: ao vocabulário, nem sempre explícito, no qual articulamos nossas visões de mundo, nossas crenças e escolhas. Manifestações como essa dos supremacistas brancos não têm nada a ver com esse tipo de pauta, mas com uma defesa de superioridade e pela consequente inferioridade dos negros.
JC – Como a intolerância se relaciona com a liberdade de exprimir o que se pensa, e de ser o que se é?
FILIPE – Há uma forte e ilegítima violência simbólica em considerar um outro ser humano como inferior, e que de maneira alguma pode ser equiparada a outras reivindicações como o direito de minorias ou grupos historicamente vistos como subalternos. A violência não se reduz somente à violência física, mas enquadra justamente uma dimensão afetiva, cujos efeitos não podem ser negligenciados. A liberdade de expressão, ao meu ver, encontra sua zona limítrofe nas diversas formas de discurso de ódio.
JC – A confusão entre doxa e episteme (entre a mera opinião e a pretensa verdade) está muito presente nas redes sociais. De alguma forma, será que esse novo front de debates, muitas vezes a fonte preferencial de informações de um indivíduo, estaria contribuindo para a emergência de posturas radicais?
FILIPE – Concordo com essa perspectiva. O maniqueísmo provoca uma polarização que não deixa espaço para visões intermediárias. É comum lermos o título ou duas linhas de um post para sabermos o seu desdobramento. São raros os textos mais ponderados e que trabalham propriamente com argumentos. Menos retórica e mais argumentos certamente ajudaria a sair de uma tensão que muitas vezes desemboca em reações mais agressivas.
JC – Qual a importância do controle dos afetos para a compreensão da política e da sociedade atuais?
FILIPE – O sociólogo Norbert Elias propôs uma concepção do processo civilizatório como controle dos afetos. Cabe perguntarmos quais são os afetos que orientam nosso viver em sociedade. Hobbes já identificava o medo como o afeto que está na base da necessidade de um contrato social. Parte do meu trabalho atual é tentar entender qual o papel da esfera pública, movimentos sociais e instituições democráticas na circulação desses afetos, e como dimensões afetivas excludentes como intolerância podem dar lugar a afetos democráticos de solidariedade e cooperação social. O afeto, em si, não é positivo nem negativo, e não é simplesmente inferior à razão. Trata-se, antes, de entender qual conteúdo dos afetos pode ser visto como legítimo ou, se quisermos, ético.
JC – O senhor também vem estudando a ligação entre os afetos e a política. Em que consiste essa relação?
FILIPE –Em primeiro lugar, não se trata de orientar a política pelos afetos, excluindo o que no debate se entende por racionalidade, princípios de justiça, papel das leis, etc. Em segundo lugar, não tenho em vista um sentido paternalista, em que se concede hierarquicamente a esferas como a do Estado a responsabilidade pela formação dos afetos. Nos dois casos, é até perigoso esse sentido de mobilização dos afetos. O que tenho em vista é basicamente diagnosticar como os afetos cumprem um papel central nas nossas escolhas e práxis social, e, a partir disso, como uma dimensão afetiva pode ser pensada também a partir de um sentido político.
JC – O Brasil de hoje parece indiferente ao caos político, em contraponto às mobilizações, por exemplo, das Diretas Já em 1984, do Fora Collor em 1992 e dos movimentos de rua em 2013. O que está acontecendo?
FILIPE – Hoje se fala muito de uma apatia generalizada no cenário nacional. Como o próprio termo exprime, apatia significa uma ausência de paixão. A minha tentativa de compreender esse fenômeno refere-se ao esvaziamento de novas utopias e a um sentimento de abatimento. O que vemos hoje é sobretudo a ausência de utopias, ou o que podemos entender como novas micronarrativas. Apatia refere-se à falta de perspectiva sobre o que lutar, sobre as motivações para se engajar apaixonadamente por um ideal, por uma alternativa.
JC – Como a filosofia dos afetos enxerga a violência disseminada pelas guerras, pelo terror e pela criminalidade urbana, sob a perspectiva da possibilidade de volta dos genocídios por bombas nucleares?
FILIPE –Essa é uma questão mais intricada porque envolve outros aspectos de política externa. Mas, do ponto de vista de uma teoria das emoções políticas, me interessa particularmente a processo de desdobramento dos afetos na forma potente do nacionalismo. O discurso de Trump na abertura da assembleia geral da ONU escancarou como o patriotismo é catalizador de motivação e legitimação de decisões políticas, como fica mais claro em discursos contra imigração. Entendo que também há uma motivação econômica por trás de alguns discursos de violência identitária. Esse discurso passa a identificar as raízes da crise econômica em grupos identitários específicos: os imigrantes, os mexicanos, naquilo que se entende como “othering”, ou seja, associar a um “outro” a causa de problemas sociais ou econômicos.
JC – A noção de pátria se insere no ideário fictício nutrido pela política?
FILIPE – A ideia de pátria remete a laços afetivos e imagéticos fortes como o vínculo a uma terra, a uma linguagem e tradições compartilhadas. Mas é historicamente datado como esse afeto é vinculado a uma ideia de Estado-nação, com o qual se passou a legitimar, por exemplo, o sentimento de honra em dar a vida pela pátria. Toda essa ficção, que, sem dúvida, exprime uma força constitutiva, pode igualmente ser desconstruída, mas não a partir de um conceito muitas vezes impotente e abstrato como cosmopolitismo, senão igualmente a partir de processos de formação no próprio âmbito afetivo. Assim como o nacionalismo é uma ficção, podemos pensar como criar novas narrativas. Contudo, não acho que é um ponto de partida, mas o horizonte de um constante processo de aprendizagem social e histórico.