Egoístas. Para um estrangeiro que tenta se aprofundar nos processos produtivos da agropecuária francesa, é quase inevitável não classificar aquela política de individualista, fechada, antiglobal. Quinta maior economia do mundo e segunda da Europa (atrás da Alemanha), a França tem um PIB per capita de US$ 44 mil, mais que o triplo do valor registrado no Brasil, US$ 13 mil. Ainda assim, em matéria de produção de alimentos, o país muitas vezes dá as costas para o comércio exterior, um reconhecido instrumento de distribuição da renda global. O governo francês subsidia fortemente os produtores que, muito organizados politicamente, não têm o menor problema em dizer que abrem mão da rentabilidade em nome da qualidade e da manutenção de empregos e preços em patamares que lhes interessam. Egoístas? Em uma semana na França, conversando com pequenos agricultores em mais de dez cidades da região da Borgonha e Franche-Comté, percebe-se que não há egoísmo. Só pragmatismo. Da parte dos agricultores, há, sim, uma bem articulada ação de sobrevivência às grandes corporações nacionais e internacionais. Na esfera governamental, executa-se um projeto eficiente para continuar sendo a maior potência agrícola da Europa ao mesmo tempo em que evita o êxodo do campo para as grandes cidades, onde problemas sociais e geopolíticos são cada vez maiores.
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O mais interessante é que esta união dos pequenos é exatamente o que garante à França o título de país com os melhores vinhos, os melhores queijos, a melhor mostarda. A França também se destaca em carnes, leite, cereais e por aí vai. O grosso da produção vem de fazendas familiares estimuladas a participar dos programas oficiais de qualidade e, assim, receberem os famosos selos como o de Denominação de Origem Controlada (DOC), o mais cobiçado e poderoso.
Mas qual a origem desta busca pela excelência? Desde 2003, após muita pressão dos países em desenvolvimento (como o Brasil) na Organização Mundial de Comércio (OMC), a União Europeia mudou seu modelo no campo. Embora siga protecionista, foca mais qualidade e meio ambiente do que o cumprimento de metas de produção. A procura pelos selos, então, aumentou.
“O que define o produto é o método de produção e a localização. Não é o tamanho da propriedade", diz Jean-Luc Dairien, diretor do Instituto Nacional de Origem e Qualidade (Inao, na sigla em francês). O Inao é um órgão público ligado ao Ministério da Agricultura. Com um orçamento anual de 23 milhões de euros, tem a missão de orientar os agricultores sobre os padrões necessários para se obter a certificação.
SELOS
No total, são cinco selos. Após receber o reconhecimento oficial, o produtor ganha mais credibilidade, poder de negociação e marketing, claro. Mais ainda: pode lutar para estender sua certificação à União Europeia. O produto fica muito mais competitivo. “Nenhum outro país pode usar o nome vinho de Bordeaux. Nós nos protegemos contra cópias, usurpação e ataques”, exemplifica Dairien, citando a região que rivaliza com a Borgonha em termos de qualidade de vinhos.
A França tem atualmente cerca de 500 mil unidades de produção dos mais variados produtos agropecuários. Vinte e cinco por cento delas têm o selo de certificação para pelo menos um produto. Juntas, somente as propriedades que contam com alguma certificação de qualidade faturam 23 bilhões de euros por ano. Se considerarmos exclusivamente aqueles que têm o selo garantindo que o produto é orgânico (uma obsessão na França), a receita geral sobe para quase 30 bilhões de euros.
Para atingir cifras tão relevantes, o processo de certificação tem de ser bastante rigoroso. Credibilidade é tudo. Tomemos como exemplo o vinho, um símbolo do país. Antes de concederem o carimbo de qualidade ao produto, técnicos da Inao vão à propriedade, verificam uvas, cepas, percentual de cada cepa para casos de misturas (assemblage), condições de plantio, distância de um parreira para outra, a poda do vinhedo, o tipo de colheita, se é mecanizada, se é a mão, técnicas de envelhecimento. Até os momentos que o sol bate mais intensamente no parreiral são levados em consideração.
Anualmente, o governo francês concede subsídios da ordem de 10 bilhões de euros a seus produtores. Países emergente como o Brasil, exportador de commodities agrícolas (trigo e soja, principalmente), costumam criticar este modelo, chamado na União Europeia de Política Agrária Comum (PAC). A lógica da crítica é simples: como pode, num mundo globalizado, nosso produto concorrer com o de outro país que recebe dinheiro vivo do governo? Para esta questão, geralmente a mais delicada nos acordos de livre comércio, o diretor de Desenvolvimento Econômico do Ministério da Agricultura, Patrice de Laurens, já tem resposta pronta. “Nossa política agrícola é das mais antigas do mundo. E seus princípios são a segurança alimentar, normas de qualidade e segurança sanitária.”
Sobre um possível acordo entre Mercosul e União Europeia, Laurens também mantém os argumentos na ponta da língua. Perspicaz, me observa fazendo a pergunta sobre protecionismo, espera pacientemente a conclusão e, calmamente, dá seu recado ao brasileiro. “Existem questões sensíveis de ambos os lados. Da mesma forma que existem os subsídios na Europa, existe o risco de desmatamento das florestas, não é mesmo?" Percebendo a complexidade do tema e sabendo que o Brasil é acusado de derrubar matas nativas para produzir soja e outras commodities, preferi não polemizar.